segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Entrevista: Se 'centro radical' for recauchutagem para 2022 não faz sentido Por Malu Delgado | Valor Econômico

SÃO PAULO - O Brasil chegou ao fim de um ciclo político e econômico iniciado com a redemocratização, o que foi evidenciado pela eleição de Jair Bolsonaro (PSL) à Presidência, observa o cientista político Sergio Fausto, superintendente-executivo da Fundação FHC.

Com base neste diagnóstico, e definindo-se como observador, e não como formulador, Fausto antecipou ao Valor em que consiste o movimento que corre a todo vapor nos bastidores para formação de um "centro radical".

O nome foi autoria do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o radical do termo é exatamente "para fazer o contraponto de algo que se define por uma geometria que não é uma coisa nem outra". Esse centro, que ainda não tem cara e nem se sabe se poderá de fato vir a ser um partido, já tem ao menos agenda clara: se aglutina em torno da defesa de solvência do Estado brasileiro com inclusão social. É um centro, explica o cientista político, que rejeita o descaso da agenda ultra-liberal com os indivíduos. "O que me vem à cabeça é o I care about you", explica.

Nas entrelinhas, ele praticamente admite a saída de FHC do PSDB, mas explica que é preciso haver roteiro bem definido para tal desfecho. A ideia é que o novo comando do PSDB, certamente encabeçado por João Doria, governador eleito de São Paulo, deixe claro a envergadura à direita, abrindo o caminho para que os tucanos históricos digam abertamente por que não mais se sentem à vontade naquele ninho.

Sobre a presença de Ciro Gomes (PDT) no centro radical, Fausto acha uma costura complexa, pelo personalismo do personagem. Se Fernando Haddad (PT) caberia no centro, o dilema é muito mais pessoal, mas o perfil do petista é bem assimilado. A única certeza, por ora, é que este movimento não pode antecipar uma candidatura para 2022. 

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Essa eleição simbolizou a ruptura do processo da redemocratização, nos últimos 30 anos?

Sergio Fausto: Acho exagerados os temores e a percepção de risco de ruptura da ordem constitucional. Mas, de fato, é o fim de um ciclo. A rigor, o sistema partidário que se organizou durante a redemocratização, que teve vigência plena entre 1994 e 2002 - um grupo de cinco a sete partidos de fato relevantes, sendo os maiores deles PT e PSDB, e, dentro do Congresso, PMDB e PFL - isso se esfarelou. E acabou o ciclo de expansão do gasto público. Nesses 30 anos, o gasto público sobe sistematicamente acima do crescimento do PIB. Foi possível financiar isso com aumento da carga tributária, do endividamento público e, durante um período, com a situação internacional favorável. Essa forma de financiar o Estado acabou; uma situação fiscal limite.

Valor: Crê no fim deste ciclo?

Sergio Fausto: Sem dúvida. É preciso reconhecer que o País cresceu pouco neste período e que isso tem a ver com a forma de financiamento do Estado. Repetir essa forma é inviável e se forçarmos a mão, ou vamos para a volta da inflação ou para o calote da dívida pública. Outra coisa que mudou brutalmente é a forma como se dá a vida política e a competição política. Isso vai obrigar a reinvenção dos partidos políticos.

Valor: Apesar de todo o desgaste do PT, o candidato oficializado no dia 11 de setembro terminou o segundo turno com 47 milhões de votos. O que explica o poder do PT?

Sergio Fausto: A figura do ex-presidente Lula é enraizada na sociedade, polariza. Ele é mais do que uma referência política racional, há forte sentimento de adesão a Lula. Ao mesmo tempo em que isso permitiu ao Haddad ir ao segundo turno, foi obstáculo para que ele pudesse alargar a votação e vencer. A figura de Lula, ao mesmo tempo em que funciona como alavanca, pesa como âncora. Haddad ficou num dilema absolutamente insuperável, uma espécie de tragédia grega. Francamente, o PT não parece preparado para o pós-Lula. Tem dificuldade imensa de se reciclar porque não consegue digerir o seu passado.

Valor: Digerir num sentido crítico, de autoavaliação?

Sergio Fausto: É quase psicanalítico, a velha história freudiana que para você crescer, simbolicamente precisa matar o pai. Não é perder o amor, o apreço e o reconhecimento da importância do pai, mas é ganhar distância dele e dizer: eu sou outra coisa. E o PT me parece inteiramente preso ao passado e a esse totem, que é o Lula, hoje imobilizado. O problema é que esse totem é o polo de unidade, o denominador comum político-afetivo.

Valor: Então nem com muito divã Haddad mataria o pai?

Sergio Fausto: Acredito eu que ele fez o possível para ampliar o raio de manobra, para ser mais Fernando e menos advogado do Lula. Ele recebeu uma procuração de poderes muito limitados.

• No Brasil, o presidencialismo de coalizão está em xeque, mas é o único software que permitiu o sistema funcionar

Valor: Com esse divisor de águas do sistema político, o que é o centro radical proposto pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso?

Sergio Fausto: Há mudanças e há elementos de continuidade. O próprio presidente eleito reconhece que sem uma coalizão no Congresso, que se construa em torno de partidos, terá muita dificuldade de governar. Portanto, o presidencialismo de coalizão no Brasil está em xeque, está em crise, mas é o único software que permite o sistema funcionar. Há maneiras distintas de operar esse software, há espaços para cada governo imprimir a sua característica. Agora, dentro de certos limites. Não dá para se governar com base no apoio de bancadas que se organizam em torno de temas específicos. Questões como previdência são gerais. Ninguém organiza maioria com base em bancadas setoriais.

Valor: A eleição também deixou muito evidente a falta de identidade da centro-direita, sobretudo com a crise do PSDB. Vai haver cisão?

Sergio Fausto: Uma das vantagens da vitória do Bolsonaro é que ficará claro que dizer que o PSDB é um partido de direita era um artifício retórico do PT.

Valor: Mas com João Doria, o PSDB não penderá à direita?

Sergio Fausto: Essa discussão era mais importante no passado do que é agora. É possível o PSDB ser uma parte importante deste centro radical, para usar a expressão do presidente Fernando Henrique. Sejamos realistas: na política, manda quem tem voto. As forças que ganharam dentro do PSDB naturalmente farão o partido caminhar mais à direita. E aí o jogo é basicamente no campo da direita, com uma alternativa ao bolsonarismo, na hipótese de o governo Bolsonaro não se sair bem. Passa a ser um jogo, creio eu, de um partido que vai estreitar relações ou afastá-las em função de um cálculo político que tem a ver com as chances eleitorais de Bolsonaro em 2022. O PSDB se deslocou para o campo da direita. Dizer que é caudatário do bolsonarismo não é verdade, mas não me parece que o PSDB possa ter protagonismo na formação de um centro radical por conta do que deveria caracterizar o centro radical.

Valor: E o que deve caracterizar esse "centro radical"?

Sergio Fausto: A orientação política mais geral: não tenho a menor dúvida de que temos que fazer ajuste fiscal. A situação fiscal é dramática, o efeito distributivo disso é muito ruim. Em português claro: os pobres pagarão uma conta enorme pela não realização do ajuste. É demagogia dizer que o país possa fazer ajuste deste tamanho sem perdas. Todos perderão. A questão é quem perde mais e menos. O centro radical tem que associar ajuste fiscal com justiça distributiva.

Valor: Esta seria a ideia central desta aglutinação de centro?

Sergio Fausto: Isso é muito incipiente e agora não é o momento de ficar discutindo qual é o formato partidário, se conjunto de partidos... É hora de pensar em torno do que faz sentido se unir. E não pode ser uma discussão abstrata. Não é clube para tertúlias literofilosóficas. É dizer o que pensa dos desafios do país. É ajuste fiscal com critério de justiça distributiva, para valer. Significa que é estrutural, que vai ter que mudar a composição do gasto público. Vai ter que fazer privatizações para valer, para abater dívidas e estancar a sangria de estatais dependentes do Tesouro. A agenda de centro radical é favorável à privatização da Eletrobrás, é favorável a de fato romper o monopólio da Petrobrás na área de refino, é inteiramente contrária a qualquer possibilidade de retorno de uma política industrial à la Dilma. É uma agenda para enterrar de vez o nacional desenvolvimentismo, sem dó nem piedade. Não gastemos vela com mau defunto. Os interesses da maioria não estão na preservação de privilégios das corporações estatais. Esse foi um dos grandes erros do PT.

Valor: E isso não poderá ressuscitar a pecha do neoliberalismo, que por questão ideológica interdita debates políticos no Brasil?

Sergio Fausto: Na economia a agenda é liberal sim. Sem receio. Tome-se o caso de monopólios estatais: é para virar essa página da história que começou a ser virada no governo FHC e o PT representou imenso retrocesso. O PT esvaziou as agências e as politizou, engatou marcha à ré com a reemergência das estatais como atores fundamentais.

Valor: O caminho para se diferenciar da direita seria então a noção de justiça distributiva?

Sergio Fausto: Esse é o conceito central. Política de identidade é tema importante, mas, com toda franqueza, o centro da discussão política no Brasil é o que vamos fazer com o Estado brasileiro para preservar a sua solvência e colocá-lo em favor das maiorias. Vamos entrar num momento de imenso progresso tecnológico. O Brasil não pode perder essa onda. Agora, engatar no trem da modernização tecnológica pode criar amplos setores marginalizados do processo produtivo e não dá para simplesmente dizer: dane-se, isso é o custo da modernização. Não é ter essa visão ultra-liberal do processo. A palavra que me vem é "Eu me importo com você", "I care about you". Tenho solidaridade por você, porque a sociedade não é simplesmente um ajuntamento de indivíduos guiados por interesses econômicos. Ela é uma comunidade, que tem ligações entre si. Isso depende de políticas públicas, e preservar isso é fundamental para o bem-estar social. O centro radical tem que ter a preocupação de incluir.

Valor: FHC falou em ampliar a aglutinação de forças do centro para além de partidos, unindo-o a movimentos inovadores. Seria por aí?

Sergio Fausto: Vejo que sim. É um processo natural de aprendizado democrático muito interessante, o reconhecimento de atores novos. A sociedade civil no período da redemocratização era organizada, institucionalizada, tinha CEP, CNJP, era a OAB, a ABI, a Igreja Católica. Hoje em dia estes atores são caracterizados por uma certa dispersão e desorganização, e há formas novas de aglutinação. Exemplos concretos: RenovaBR, RAPS (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade). É uma nova forma de atuação da elite brasileira, inclusive empresarial, na política, muito melhor e saudável. Isso fomenta não apenas alianças transpartidárias, mas permite a emergência de novos líderes cívicos que vão entrando na política.

• Centro radical deve ter agenda de ajuste fiscal, privatização da Eletrobrás e fim do monopólio da Petrobras na área de refino

Valor: Mas se são movimentos encabeçados pela elite, o centro radical, a médio prazo, caso vire novo partido, não corre o risco de perder penetração social, como o PSDB?

Sergio Fausto: A política tem sempre uma tensão, entre o horizontal e o vertical. Esse é o risco do personalismo. Agora, quão mais horizontal for, melhor. É o momento de discussão de ideias e formas de atuação, sem que haja o protagonismo de um, dois ou três. E menos ainda pré-figurações de candidatos para 2022.

Valor: Mas não é provável que o debate sobre 2022 surja?

Sergio Fausto: Uma das vantagens de perder é que você tem algum tempo de se reposicionar. É gastar uma energia importante na reconstrução de um centro novo. Novo do ponto de vista de agenda, sem inventar a roda.

Valor: Se essa aglutinação de centro envolver a old school da política e novos nomes, como do RenovaBR, não vão despontar nomes para 2022, como Luciano Huck?

Sergio Fausto: Só me cabe esperar sabedoria e capacidade de autorrestrição dos vários personagens envolvidos para entender que, se for simplesmente uma espécie de recauchutagem [para 2022], não faz o menor sentido. Aí de fato é melhor cada um ficar na sua casinha partidária. Se é para se desacomodar de onde está para ir em busca de um lugar que ainda não está construído, é para, de fato, construir alguma coisa que seja inspiradora. Isso não significa desprezar o aprendizado e a experiência de figuras que fizeram história na política brasileira.

Valor: Sabe-se que estas conversas já estão ocorrendo. Como isso pode, de fato, ser viabilizado?

Sergio Fausto: Sou observador, até como expressão de desejo. Isso vai implicar algo que não é simples, que é ao mesmo tempo fazer o diálogo interno aos partidos de origem de cada qual e um diálogo no meio de campo, entre este eventual espaço de interseção dos partidos. No caso do PSDB, esse processo de mudança natural, na executiva, será uma oportunidade para discutir.

Valor: Para ficar claro quem quer sair da sua casinha partidária?

Sergio Fausto: Sim [risos]. Precisa explicar ao distinto público por que está saindo, se é que é o caso de sair. Pode-se chegar à conclusão que não é o caso de sair. O problema é explicar para as pessoas por que você está saindo e por que você está ficando. Isso vai acontecer de maneira central no PSDB. Não será simplesmente troca de guardas.

Valor: Até porque se FHC deixar o PSDB isso será um fato histórico.

Sergio Fausto: Não passará despercebido [risos]. Acho, de fato, que este processo vai acontecer. É natural, é salutar. A qualidade do processo que é importante assegurar. Que seja menos uma disputa de cotas de poder, mas de visões. Se ficar é porque tem convergência, se sair é porque tem divergência. Isso acontecerá também na Rede e no PPS, talvez no MDB, com Paulo Hartung se desligando da sigla. Duas questões estruturais: alguém saberá fazer a gestão disso, mas a primeira coisa é dizer onde erramos. Por que deu ruim? E, depois, para onde vamos e como vamos? De que modo vamos fazer essa caminhada? Aí lá na frente você vai ter mais clareza deste conjunto de forças.

Valor: E com quais pessoas?

Sergio Fausto: Pessoas é algo mais para a frente. Tem um conjunto de forças? Que formato vai ganhar? Quantos partidos? Novos partidos, velhos, fusões? Isso vai ter que esperar. E, muito mais lá para a frente, coisa para começar a pensar daqui dois anos, pensar em torno de que pessoas a proposta pode encarnar.

Valor: Pensar em 2022 em 2020.

Sergio Fausto: Inverter isso é o risco que a oposição em torno do Ciro corre. Ciro é uma figura política maior, personalista. Tem certa visão do Estado e ele é o condutor desta política. A maneira pela qual ele procura cativar o eleitorado é dizer: eu não me submeto a esses arranjos, eu sei, eu tenho experiência. É na primeira pessoa do singular. É talentoso, mais na cena aberta que no bastidor.

Valor: Ciro cabe neste centro?

Sergio Fausto: Na vida democrática você tem que dar o benefício da dúvida e deixar o espaço aberto para conversar. Ciro, há 20 anos, quando o PSDB se aproximou do PFL e começaram as negociações e havia críticas, soltou uma frase: "O que pega é catapora". Não tem nenhum problema testar a hipótese de haver convergência. Agora, o personalismo do Ciro, pelos defeitos e pelas virtudes, pode vir a se revelar um obstáculo. Precisamos evitar essa ideia de que será possível no Brasil a criação de um bloco hegemônico que dá as cartas.

Valor: E Fernando Haddad?

Sergio Fausto: Haddad terá tão mais liberdade política quão mais afastado estiver do PT. Será um dilema individual. Acho que este governo Bolsonaro não será um desastre, não devemos apostar nisso. Não significa alinhar. O que é criticável no movimento que o Doria tem feito é que antes que o governo apresente suas propostas, ele dá sinais claros de alinhamento estreito. É um equívoco. O PSDB ou os partidos que perderam têm que estar na oposição. Não pode ser a oposição tal como o PT a exerceu desde a sua criação.

Valor: Crê numa frente de centro-esquerda, com Ciro e Marina?

Sergio Fausto: Marina não sei. A vejo mais próxima do centro radical, até porque acho que ele tem que incorporar a temática ambiental. Temos que reconhecer que esse centro, do ponto de vista organizacional, parte muito débil. Perdeu a eleição, está de escanteio nos seus partidos, ou os partidos são pequenos. O fato é o seguinte: se o centro se estrutura e ganha uma cara, isso obriga o Ciro a se deslocar à esquerda. A força política tem a ver com a definição do terreno da disputa. Se isso aqui ficar amorfo, o Ciro balança da esquerda para o centro e ali constrói sua força. Do ponto de vista do centro, é estreitar esse espaço de manobra do Ciro. Não é hostilizá-lo. É dizer: aqui tem uma risca de giz. Nisso aqui você não consegue entrar. Então você tem que ficar mais pra lá mesmo.

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