- O Globo
Pode-se atrasar o futuro, mas não se pode impedir que ele aconteça. O recado das urnas americanas vale para outros países: este é o século da diversidade
O que houve de mais importante na eleição americana foi a vitória da diversidade. Em um governo hostil às diferenças, dirigido por um presidente intolerante com os imigrantes, o voto trouxe para a cena política pessoas de origens, religiões, orientação sexual, idades diferentes entre si. O recado que ficou é que o futuro inevitável é o do alargamento da representação política porque todas as vozes querem ser ouvidas e é isso que fortalece a democracia.
A nova maioria democrata na Câmara dos Deputados será fundamental para a continuidade da investigação sobre os subterrâneos da eleição do presidente Donald Trump e a nunca devidamente explicada participação russa na campanha na internet. É importante também por fortalecer os pesos e contrapesos da democracia, diante de um presidente que é capaz de afrontar a primeira emenda da Constituição, a da liberdade de imprensa, como fez com o jornalista Jim Acosta que cobria a Casa Branca. Depois de ouvir as acusações do presidente, teve sua credencial cassada. Curioso como a atitude de Trump lembra a do coronel Hugo Chávez. Ele também acusava alguns jornalistas e jornais de serem “inimigos do povo”, quando não gostava do que lia ou das perguntas que ouvia. As mentes autoritárias se parecem, independentemente da ideologia que afirmam ter. Os autoritários em qualquer país acusam seus críticos de serem contra o país e o povo. A diferença está na força das instituições que se contrapõem a eles. Infelizmente a Venezuela nunca teve uma democracia sólida e ela foi sendo demolida paulatinamente por Chávez e Maduro.
O que a eleição americana traz de mais importante é a força da diversidade. Duas “native americans”, ou indígenas, chegaram à House: Sharice Davids e Deb Haaland. A primeira é homossexual e filha de mãe solteira; a segunda, da tribo Pueblo Laguna, é ativista comunitária no Novo México. Duas outras congressistas são as primeiras muçulmanas eleitas. Ilhan Omar nasceu na Somália e Rashid Tlaib nasceu nos Estados Unidos, mas de pais palestinos. O Colorado elegeu o primeiro governador gay assumido. Jared Palis é casado e tem dois filhos. Vários outros estados elegeram pessoas negras. Massachussetts, por exemplo, mandará para a Câmara a primeira mulher negra a representar o estado. A juventude também teve avanços. Alexandria Ocasio-Cortez, de Nova York, é a deputada mais jovem a ser eleita. São muitos os casos de vitória de pessoas diferentes do padrão tradicional dos poderosos de Washington. Na campanha, o “The New York Times” já havia registrado que essa era a eleição com maior diversidade. Publicou uma coleção de rostos que mostrava o colorido e a beleza do painel humano que se oferecia ao eleitorado.
Pode-se atrasar o futuro, mas não se pode impedir que ele aconteça. Esse recado das urnas americanas vale para os muitos países onde cresce a onda conservadora, que tem a visão tradicional de família como a única possível e nos quais, por gestos e palavras, mulheres, índios, negros, homossexuais são tratados como inferiores. Este é o século da diversidade, da ampliação da representação democrática para todos os grupos, do diálogo entre pessoas diferentes entre si, da proteção do planeta por todos os meios possíveis.
Há quem acredite, ainda hoje que o melhor para tratar a desigualdade é não falar nela e repetir o bordão de que somos todos iguais. Somos, mas encarar as desigualdades e conhecer-lhes as causas é a única forma de superar as distâncias. Quem divide não é quem fala da desigualdade, é quem finge não vê-la. Essa política de avestruz ainda tem seguidores.
Não se pode avançar no século XXI carregando convicções arcaicas. Qualquer vitória do atraso é temporária. Trump ficou um pouco mais fraco essa semana, porque o partido Republicano perdeu a maioria na Câmara. Ele ainda é forte. Ampliou sua margem no Senado e fortaleceu a direita do partido que é a mais ligada a ele. Mesmo assim, sua real derrota é mais sutil e permanente. O seu ideal de América de maioria branca e conservadora ficou um pouco mais distante. O futuro não vem numa linha reta, sem hesitações. Pelo contrário, há momentos em que ele parece estar perdido. Mas os retrocessos são soluços da velha ordem, a antítese do futuro.
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