André Vargas | Revista ISTOÈ
Observador da realidade brasileira desde 1979, quando voltou do exílio após a Anistia, o mineiro Fernando Gabeira, 77 anos, foi jornalista, ativista e político, voltando ao jornalismo após o fim de seu quarto mandato como deputado federal pelo Rio de Janeiro, em 2011. Desde 2013, ele apresenta um programa de reportagens que leva seu nome no canal GloboNews. Com passagens pelo Partido Verde (PV), que ajudou a fundar, e Partido dos Trabalhadores (PT), com o qual rompeu, Gabeira crê na reconstrução da esquerda brasileira e dos movimentos sociais sem as amarras petistas. Dono de uma lucidez crítica e desprovida de pudores ideológicos, ele falou sobre os acertos da campanha de Bolsonaro, as conexões de seu populismo com o de Donald Trump, o surgimento de uma nova direita via redes sociais, a relevância do jornalismo diante das fake news e o papel dos militares no novo governo.
• O que você achou do resultado geral das eleições?
Não meu surpreendeu. Sua vitória afirmou três pontos. Primeiro, foi uma grande crítica ao sistema político. Bolsonaro representa uma forma de virar a mesa. Depois, uma possibilidade de luta contra a corrupção. E, finalmente, a expectativa de uma política de segurança eficaz. Embora, não necessariamente ele será capaz disso. Bolsonaro apenas apresentou essas ideias com mais ênfase e de forma mais clara para o entendimento popular.
• As eleições de Bolsonaro e de Trump foram parecidas?
Há pontos em comum. O principal é a utilização das redes sociais. A seguir, é a expectativa de alcançar o homem comum, colocando-o contra o que dizem ser o sistema. Ambos os políticos se mantêm distantes dos partidos políticos, apesar de Trump ter a força do partido Republicano por trás. Ambos também se mostram distantes da mídia, de especialistas, de técnicos e de intelectuais. Todavia, Bolsonaro fez uma campanha bem modesta. Trump não só tinha muito dinheiro arrecadado, como uma rede de televisão [Fox] grande e conservadora ao seu lado. Por isso, acho que a campanha do Bolsonaro foi mais difícil.
• A democracia de coalizão que pautou a Nova República está exaurida?
Tanto que a proposta do vencedor é superá-la por meio da escolha de ministros que sejam técnicos, competentes e independentes de filiações partidárias. Será uma tentativa de superar o modelo anterior, o que é de difícil realização. O novo presidente terá que ser um pouco mais aberto, a ponto de entender que, se houver gente competente e honrada nos partidos para ocupar alguns postos no governo, ele terá que abrir espaço. Um governo não pode discriminar seus políticos. Seria algo extraordinário.
• Como o senhor avalia o crescimento político dos evangélicos. Hoje daria para governar sem eles e sua agenda conservadora?
O campo que elegeu Bolsonaro é diversificado. Há os evangélicos e também jovens liberais que fazem apologia do estado mínimo, além de intelectuais e propagandistas de direita que surgiram na mídia e nas redes sociais nos últimos tempos. Os evangélicos sempre estiveram na política, só que agora encontraram um candidato que, além de professar o mesmo credo, parece disposto a aceitar uma série de reivindicações. Algumas podem ser problemáticas, como a ideia recente de transferência da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém. Temos no Brasil uma grande harmonia entre as comunidades judaica e árabe, além de relações comerciais com países do Oriente Médio, grandes compradores de nossos produtos. Isso poderia nos prejudicar.
• O futuro governador do Rio Wilson Witzel (PSC) fala em combate aberto contra o tráfico. Seria por aí?
É preciso distinguir o combate às drogas e o combate aos grupos armados que ocupam territorialmente certas áreas. Há táticas e problemas. Eu apoiei a intervenção federal na Segurança Pública do Rio. Achava que as polícias não tinham mais condições de rechaçar o crime. Parte por falta de equipamento, parte por corrupção, além de outros fatores. A intervenção trouxe alguns parâmetros, com regras de engajamento adotadas no Haiti. Porém, não foram desenvolvidas táticas para enfrentar esses grupos, que também podem ser encontrados no México, em El Salvador e até na Síria. Diante de quem utiliza a população como escudo é preciso políticas mais sofisticadas. Se as forças armadas atingem e matam moradores, acaba-se fomentando um apoio permanente da população ao tráfico.
• A campanha eleitoral à Presidência tirou a relevância da cobertura jornalística tradicional?
Não creio, ainda que parte dos candidatos tenha falado diretamente com seus eleitores por meio das redes sociais. É preciso lembrar que grande parte dos temas que as redes discutiram nasceu da cobertura da mídia tradicional. As redes, por si, não podem dispensar a estrutura tradicional de apuração de notícias, pois é daí que tiram a matéria-prima com a qual trabalham e brigam.
• O boicote do presidente eleito aos grandes veículos de imprensa é um tiro na democracia, uma maneira de se preservar ou a escolha de um adversário?
Quando ocorre uma situação de crise em que populistas entram em cena, eles tendem a apresentar o conjunto da imprensa, da política, da academia e da Justiça como partes de um sistema, fazendo com que tudo seja visto como um ataque contra a renovação. Creio que a referência que temos que analisar é o próprio Trump, que foi muito mais radical, acusando a imprensa de ser inimiga do povo. Já Bolsonaro falou que a “Folha de S.Paulo” tem que acabar e, em certos momentos, não fala com jornalistas de determinados veículos. Na comparação, os termos de Bolsonaro são mais brandos.
• Qual o futuro do jornalismo em tempos de fake news?
Quase todas as grandes empresas jornalísticas tiveram que montar equipes para traduzir as fake news. É indispensável que a sociedade tenha notícias bem apuradas e verdadeiras para que as pessoas e as empresas tomem as decisões corretas. As estruturas profissionais de jornalismo gastam até 30% de seu esforço confirmando informações, algo que não existe na internet. É claro, porém, que existem pessoas nas redes que só acreditam no que querem acreditar. Daí não se pode fazer nada.
• Bolsonaro disse ser apaixonado por você. Como assim?
Ele estava fazendo campanha. Antes, convivemos 16 anos na Câmara dos Deputados, atuando em campos diferentes, mas nunca tivemos um atrito. Sempre nos respeitamos e nos unimos quando o tema era corrupção.
• Essa mentalidade militar que se apresenta nos postos do próximo governo oferece algum risco?
As Forças Armadas se transformaram nos últimos anos, por isso alguns de seus integrantes ao lado de Bolsonaro podem funcionar como elementos moderadores. A aventura autoritária foi decantada e hoje os militares integram o campo democrático, com uma leitura nova do mundo, sem a Guerra Fria. Muitos quadros militares fizeram assessoria parlamentar, adquirindo uma visão muito clara do que é o mundo político.
• Após décadas de avanços sociais e políticos, lhe parece que parte dos brasileiros ficaram mais conservadores?
Essa tendência conservadora sempre existiu de modo latente. O que houve foi um fracasso ético da esquerda no poder, o que colocou, por extensão, em dúvida muitas de suas bandeiras. Outro fator foi o governo de esquerda encaminhar algumas medidas favoráveis às minorias, tentando avançar, sem a consulta permanente à população. Um exemplo é a educação sexual nas escolas. Muita gente prefere que isso seja feito dentro da família. A esquerda fez avanços, sim, mas que acabaram ofuscados pela corrupção, o que fortaleceu uma certa visão de impureza nas lutas sociais e identitárias. Outro ponto é o surgimento, ao largo da imprensa, de pensadores de direita, alguns deles jovens liberais, outros propagandistas religiosos, de redes sociais. O movimento Escola Sem Partido, por exemplo, representa uma reação à presença da esquerda no magistério. Todavia, não acredito que isso deva ser feito com repressão. Defendo a diversidade de opiniões nas escolas.
• A violência contra as minorias pode aumentar?
A forma como o tema foi apresentado na campanha suscita tais atitudes. Às vezes, pode-se chegar à violência, como ocorreu pontualmente, em outras, podemos ficar naquele humor violento, como o das torcidas organizadas cantando: “Bolsonaro vem aí para matar viado”. Creio que passada a eleição, essas questões devem entrar em segundo plano, já que teremos discussões sobre Reforma da Previdência, economia, acertos políticos e segurança pública. Tudo isso envolverá o País.
• O que você achou da fusão do Ministério do Meio Ambiente com o da Agricultura?
Se o Meio Ambiente se transformasse em uma agência, não veria problema. O que me preocupa é que as agendas do Meio Ambiente e da Agricultura são muito vastas, por isso acho que não vão ser bem cumpridas. Há também a crítica de que colocaram as raposas cuidando do galinheiro. Isso pode fazer com que nossos produtos agrícolas no exterior sejam boicotados, pois nossos competidores podem se mobilizar. Já houve uma fake news de vaca louca brasileira espalhada no Canadá.
• Há saída para a esquerda brasileira?
Claro que há. O governo que começará no Brasil irá liberar muita energia de oposição. Imediatamente após a vitória de Trump, a sociedade americana e os democratas passaram a se mobilizar. A esquerda do partido Democrata ganhou espaço na Câmara com as eleições desta semana. Com isso, quero dizer que a direita será superada, pois haverá alternância no poder. A única dificuldade que vejo na esquerda brasileira, que não há entre parte dos democratas americanos, são essas denúncias de corrupção que aqui não foram objeto de crítica interna. Agora, acho que novas configurações podem surgir. Até o PT pode se transformar. Não está proibido. O caminho está aberto, pois não sabemos que êxitos Bolsonaro obterá. Também acredito que os movimentos sociais, que reúnem lutas de minorias, mulheres, índios e negros, precisam fazer uma crítica sobre sua associação ao PT. Alguns foram cooptados, o que criou uma certa hostilidade que talvez não seja exatamente contra suas causas, mas contra o partido.
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