- Folha de S. Paulo
Nosso principal desafio é combater a pobreza
A maior parte das pessoas, quando fala em desigualdade, está no fundo se referindo à pobreza. Mortalidade infantil, falta de saúde e segurança, analfabetismo, fome; esses são sintomas da pobreza —da falta de recursos para atender a necessidades básicas. Não estão diretamente ligados à desigualdade, isto é, à distância que separa os pobres dos ricos.
Bangladesh é mais igualitário que o Canadá; mas é muito mais pobre. É por isso que se criou um lugar-comum de que a desigualdade não importa; só importa a pobreza. Melhorando as condições de vida absolutas dos mais pobres, não seria preciso se preocupar com a distância existente entre eles e os mais ricos.
A conclusão é precipitada. Deixando de lado a questão do valor abstrato da desigualdade (se ela é, em si mesma, boa ou má, justa ou injusta), há certos efeitos dela que são negativos. Um deles é a redução do bem-estar. Ao contrário do mito liberal dos proprietários independentes que vivem contentes com o que têm, sem se comparar ao vizinho, a imensa maioria das pessoas vive a necessidade de se comparar e sobressair; e o consumo reflete isso.
Um mundo excessivamente desigual, em que os mais pobres veem o abismo que os separa dos ricos e sabem que essa distância jamais será vencida, será também um mundo de muita frustração existencial.
Além disso, a extrema desigualdade econômica abre caminho para a captura da política e da legislação pelos interesses dos mais ricos, sem que o grosso da população tenha qualquer arma para se defender da sanha daqueles que já têm mais.
A extrema igualdade, contudo, também traz perigos. Uma sociedade muito igualitária é uma sociedade que tende a não premiar o desempenho excepcional, tolhendo seus maiores talentos e impondo a todos o peso da conformidade à média. Não é à toa que os EUA, país competitivo e (por isso) desigual, atraem tantos dos melhores profissionais e acadêmicos do planeta.
Vale lembrar também que a desigualdade econômica não é a única desigualdade relevante. O preço pago pelos países socialistas pela redução radical da desigualdade econômica, além da pobreza crônica, foi produzir uma brutal desigualdade de poder, muito maior até mesmo do que as democracias capitalistas mais deturpadas (como a nossa).
Algumas formas de combate à pobreza reduzem também a desigualdade: por exemplo, taxação dos mais ricos e distribuição de renda para os mais pobres. O Brasil, que taxa proporcionalmente pouco os estratos superiores da renda, temos espaço para melhorar aí.
Outras, contudo, podem combater a pobreza sem mexer na desigualdade ou podendo até aumentá-la. É o que aconteceu na China nas últimas décadas: graças a reformas liberalizantes, o país experimentou uma brutal redução da pobreza extrema (foram 300 milhões de pessoas que deixaram a pobreza extrema e hoje consomem avidamente) ao mesmo tempo em que a desigualdade também se intensificou: há toda uma classe de milionários e bilionários que antes não existia.
Como na maioria das questões importantes da vida, a ciência não tem as respostas. A quantidade ideal de desigualdade varia segundo as circunstâncias e as preferências de cada um. Provavelmente, nenhum dos extremos será desejável à maioria das pessoas.
No Brasil, um dos países mais desiguais do mundo, essa discussão sobre a desigualdade importa. Não é, contudo, o problema mais urgente. Afinal, se há crianças morrendo de diarreia, significa que o nosso principal desafio não é reduzir a desigualdade, e sim combater a pobreza.
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Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
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