Apesar de discurso ideológico feito do parlatório, pacificação é vital para a pesada agenda de reformas
Todo presidente sobe a rampa do Planalto com alguma simbologia, independentemente das paixões políticas. Se Lula, em 1º de janeiro de 2003, foi o primeiro operário a colocar a faixa presidencial, Jair Bolsonaro, nos 30 anos de redemocratização, institucionalizada pela Constituição de 1988, carrega a marca do ineditismo de ser um representante assumido da direita. Cumpre-se o saudável princípio democrático da alternância no poder, depois de longo ciclo de governos à esquerda, de tucanos e petistas, sustentados em alianças com forças conservadoras. A chegada ao poder, pelo voto, de um representante da esquerda e de um deputado ex-capitão do Exército, da direita — até há pouco, assumido simpatizante da ditadura —, é prova da solidez da democracia. Que precisa ser preservada seja quem for o ocupante do Planalto.
Na solenidade de assinatura do termo de posse, no Congresso, Bolsonaro fez um correto contraponto a uma campanha acirrada, radicalizada, em que sofreu um atentado à faca. Falou em pacto, prometeu trabalhar para “construir uma sociedade sem discriminação ou divisão”, referência que remete à atmosfera de ódio que acompanhou momentos da campanha e da qual ele foi um dos protagonistas. Ao discursar do parlatório, o presidente, de forma compreensível, usou um diapasão ideológico. Mas, para governar, precisará descer do palanque.
O novo presidente herda desafiadoras distorções criadas a partir do segundo mandato de Lula (2007-10) e ampliadas no período Dilma Rousseff (2011-16), quando o país serviu de laboratório para terapias estatistas de um nacional-populismo de esquerda que desmontou o equilíbrio fiscal.
O emedebista Michel Temer, vice de Dilma, afastada por impeachment ao cometer crime de responsabilidade na manipulação das contas públicas, pôde conter o processo de agravamento da crise fiscal, mas, devido a fragilidades éticas, não teve força para executar a reforma da Previdência, estratégica na volta do país ao crescimento sustentado.
A tarefa cabe agora a Jair Bolsonaro. Na verdade, cai sobre seu governo um Estado que exerce enorme peso sobre a sociedade — expropria por impostos cerca de 35% do PIB e mesmo assim gasta mais do que isso —, presta serviços de baixa qualidade e, na redistribuição do que arrecada, ainda comete injustiças sociais. Concentra renda, como na Previdência.
Bolsonaro poderá fazer uma gestão histórica se reformar o Estado, o que implica atualizar as regras da Previdência, mas não só. Precisará, nesta tarefa, enfrentar fortes corporações, inclusive a própria, dos militares, cujo sistema de seguridade também precisa ser reformado. Por tudo isso, o novo governo necessita forte apoio no Congresso, como disse o presidente na cerimônia no Legislativo. Daí ter falado em pacto.
O novo governo tem duas fortes equipes reunidas nos superministérios da Economia, com Paulo Guedes à frente, e no da Justiça e Segurança Pública, entregue ao ex-juiz Sergio Moro, da Lava-Jato. Enfrentarão problemas que, não equacionados, podem desestabilizar o estado democrático de direito: além da corrupção, a crise econômica e o crime organizado, que, depois de se enraizar na Federação, sem obedecer a fronteiras estaduais, se internacionaliza da mesma forma. Há um conjunto de alterações legislativas e operacionais que necessitam ser feitas, para que este enfrentamento tenha êxito.
A questão se relaciona à necessidade de uma competente coordenação política com o Congresso. O fato de o PSL, partido do presidente, haver constituído a segunda bancada da Câmara, no vácuo da popularidade do candidato Jair Bolsonaro, é auspicioso, mas há assuntos-chave, como o da reforma da Previdência, que não tem apoio unânime na legenda. Junto com a volta à oposição do PT e satélites, em que sempre foram competentes, preveem-se dificuldades no Legislativo que precisarão ser enfrentadas de forma competente.
Oriundo do baixo clero, Bolsonaro sabe bem como operam os subterrâneos do Congresso. Será bom começo se de fato o presidente cumprir a promessa de aposentar práticas fisiológicas de que PT e aliados se valeram para exercer o poder. Os 13 anos de governos lulopetistas resultaram em condenações e prisões por corrupção e desgaste para o próprio Congresso. O exercício competente do diálogo e da negociação será vital.
O caso ainda mal explicado da movimentação bancária do policial militar Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro, eleito senador, quando este era deputado na Alerj, deve alertar o presidente para delimitar bem os espaços institucionais e familiares. O trabalho à frente do 38º presidente da República nas reformas necessárias já será intenso para que ainda haja uma dispersão de esforços em crises políticas desnecessárias. A gravidade dos problemas do país não permite perda de tempo. A margem para erros se estreitou.
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