- O Estado de S.Paulo
Presidente é chamado a entrar no jogo da reforma. Mas “qual” presidente?
O enredo parece inspirado em “blockbusters” que de vez em quando ganham as telas de todo o mundo: enquanto a população se distraía com as festas de fim de ano e as férias de verão, sorrateiramente dois governos se instalavam no Planalto. Mas, ao contrário do que costuma acontecer nesses filmes, não havia nenhum impostor sentado na cadeira presidencial.
É como se Jair estivesse no comando de um dos governos e Bolsonaro, de outro. Sim, apenas uma fantasia, mas uma fantasia mais real do que a realidade insólita exibida nos dois meses e meio de mandato do capitão – e, mais grave, até pouco tempo atrás “comprada” com naturalidade por determinadas parcelas da sociedade, especialmente pelos mercados e por setores produtivos da economia.
Enquanto Jair e a ala arquiconservadora do ministério atendiam a uma parte do eleitorado, com declarações e atitudes controvertidas, principalmente na chamada pauta social e de costumes, Bolsonaro e a equipe econômica atendiam à outra parte, com o discurso insistente de prioridade absoluta à reforma da Previdência e outros projetos dentro do campo do liberalismo, como as mudanças na legislação sindical e trabalhista.
Cada um desses públicos escutava as mensagens de seu interesse e tapava os ouvidos para as outras, como se a saída fosse escolher um presidente para chamar de seu. Tem a Damares com o rosa e o azul, tem o Vélez com os brasileiros canibais? Sim, mas tem também Moro e Guedes, com carta branca para fazer e desfazer nas suas áreas. Desnecessário dizer que as cartas não são tão brancas assim.
As duas alas preferiam não questionar até quando os governos de Jair e Bolsonaro conseguiriam manter essa distância. A cada dia que passa, porém, ficam cada vez mais visíveis os limites dessa convivência.
É verdade que uma certa mistura de papéis já era esperada, com base na divisão das forças que apoiaram a candidatura Bolsonaro e até na inexperiência do grupo que chegou ao poder. Mas dificilmente alguém imaginaria a sucessão de inconveniências de alguns ministros e principalmente do próprio presidente – que chegaram ao extremo com a absurda divulgação do tal vídeo obsceno no Twitter e, logo em seguida, com a fala sobre a subordinação da democracia às Forças Armadas.
Jair e Bolsonaro meteram os pés pelas mãos e assustaram uma parcela considerável de apoiadores. Menos, é óbvio, as turbas de “haters” que infestam as redes sociais. Como sempre, na sequência vieram as traduções do pensamento bolsonariano – “não foi bem isso que ele quis dizer” –, principalmente pela voz do vice Hamilton Mourão. O crescente mal-estar causado por esses episódios, porém, só faz reforçar as críticas ao despreparo do presidente e, por tabela, ampliar os rumores de desconforto entre os militares do entorno do Planalto.
Pelas mudanças de direção nos mercados nos últimos dias, pode-se concluir que os investidores já começam a se perguntar onde vai dar essa confusão. Não há como esquecer o Jair e ficar só com o Bolsonaro. Ou o contrário. Na quinta-feira, o dólar chegou a bater na marca dos R$ 3,90, a maior do ano, e analistas atribuem parte dessa escalada aos tropeços do governo, ainda que o principal fator seja a piora do cenário externo.
Na avaliação geral, Bolsonaro não tem demonstrado firmeza em relação à reforma da Previdência. Prova é que, com uma penosa negociação pela frente, achou por bem ir para o celular e atacar o carnaval. Desse jeito, não há articulação política que aguente o tranco.
É muito cedo para decretar que a reforma da Previdência vai ou não vai adiante ou que investidores estrangeiros voltem ou continuem afastados do Brasil. Especialmente investidores na economia real, que dependem de mais garantias sobre a consistência do ideário liberal do governo Bolsonaro. Mas que é preciso organizar já o governo, da porta para dentro, não há a menor dúvida.
Reformistas defendem que, para pôr de pé a Nova Previdência, é crucial o presidente entrar em campo. Atendendo a pedidos, depois das confusões carnavalescas, Bolsonaro fez várias manifestações em redes sociais sobre a urgência nas mudanças na Previdência e sobre a necessidade de não “desidratar” a proposta original. Além disso, reuniu-se com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para acertar o tom do início das conversas no Congresso e os agrados às bancadas de aliados.
A pergunta fundamental, porém, é: “qual” presidente vai entrar no jogo da Previdência? Aquele que banca o programa econômico de Paulo Guedes ou o que bate boca no Twitter com quem vem pela frente? Antes de qualquer coisa, Jair e Bolsonaro têm de se entender.
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