- O Globo
‘Nenhuma de nossas crenças é inteiramente verdadeira’, disse Bertrand Russell, que anda fazendo falta no mundo de 2019
É conhecida a eletricidade intelectual do filósofo, matemático, historiador e crítico social Bertrand Russell, também chamado de “poeta da razão”. Recebeu o Nobel de Literatura em 1950 como poderia ter recebido o da Paz, pois a fundamentação dos jurados para agraciá-lo foi a de que seus escritos “promovem ideais humanitários e a liberdade de pensamento”. Sua vastíssima obra é marcada por um ceticismo de raiz.
Menos conhecida é uma de suas conferências transformada em livreto —“Pensamento livre e propaganda oficial” —, proferida na bicentenária Conway Hall Ethical Society de Londres. Naquele discurso Russell pregou a vontade de duvidar como essência do pensamento livre.
“Nenhuma de nossas crenças é inteiramente verdadeira. Todas contêm alguma penumbra de imprecisão, de erro”, disse. E entre as várias formas de aproximação da verdade, destacou “o controle de nossos próprios preconceitos através do debate com quem tem preconceitos contrários”. Também indicou que a classificação “livre” é vazia, a menos que se esclareça do quê algo ou alguém se libertou.
Bertrand Russell anda fazendo falta no mundo de 2019. Nos Estados Unidos, coube a um congressista reeleito pela sétima vez inaugurar novo patamar de retórica do ódio. Steve King, cuja afeição por supremacistas brancos é conhecida, postou um meme vislumbrando uma segunda Guerra Civil no país: um mapa dos Estados Unidos em forma humanoide, com dois soldados em combate, um azul e outro vermelho representando estados que votam Republicano ou Democrata. A legenda dizia tudo: “Um lado tem oito trilhões de balas, enquanto o outro lado sequer sabe qual banheiro usar. Adivinhem quem vai vencer ...” Pressionado, o parlamentar deletou a postagem, mas a palavra amaldiçoada — guerra civil — já havia impregnado as redes sociais.
Na Turquia, foi o próprio presidente Recep Erdogan que ressuscitou uma matança de outro século para apimentar a campanha de seu partido às eleições locais de hoje, 31 de março. Em pelo menos oito comícios, Erdogan utilizou segmentos do recente atentado a duas mesquitas na Nova Zelândia, inclusive algumas das horrendas cenas on-line, para incitar seus partidários. “Este ano”, avisou, visitantes anti-islâmicos que forem se aventurar até Gallipoli, no Estreito dos Dardanelos, voltarão para casa em caixões, “como seus avôs”.
Ele se referia a uma das mais longevas batalhas da Primeira Guerra Mundial, na qual as tropas do Império Otomano, em franca minoria, rechaçaram invasores da França e do Império Britânico, inclusive soldados da Nova Zelândia e Austrália. Ali morreram cerca de 600 mil soldados dos dois lados, e Gallipoli tornou-se ponto de romaria anual para os descendentes dos países envolvidos. A ver o que os aguarda no próximo 25 de abril, data de homenagear seus mortos.
Também dias atrás, outro presidente, o mexicano Andrés Manuel López Obrador, ou AMLO, teve a ideia de lançar contra a Espanha um petardo diplomático que remonta a 500 anos. Em carta enviada ao rei Felipe VI, ele exige que a antiga metrópole peça perdão por abusos praticados por Hernán Cortés contra os povos nativos durante a conquista das atuais terras mexicanas. “Houve matanças, imposições... uma conquista feita com espada e cruz”, diz a carta do presidente, que gostaria de celebrar em grande estilo o bicentenário da Independência do México, em 2021, livre da sombra do passado — o 500º aniversário da queda de Tenochtitlán também será em 2021.
Deu errado. A Espanha, país que até hoje não conseguiu inventariar sequer o morticínio de sua própria gente durante a ditadura franquista, rechaçou a exigência. No México, a presidente do Congresso Nacional Indígena, María de Jesús Patricio, qualificou a exigência de AMLO de marketing político. E de Córdoba, na Argentina, onde participava do VIII Congresso da Língua Espanhola, o escritor Mario Vargas Llosa atropelou a pauta e deu o coup de grâce. “O presidente do México se enganou de destinatário”, discursou o Nobel de Literatura. “Ele deveria tê-la enviado a si mesmo e responder por que o seu país, que se incorporou ao mundo ocidental há 500 anos e há 200 desfruta de plena soberania, ainda tem tantos milhões de índios marginalizados, pobres, ignorantes e explorados.”
No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro teve a ideia de ofender o passado e atiçar a nação neste 31 de março. O recuo de “comemoração” para “rememoração” da data não muda o essencial. Ontem, hoje e amanhã, golpe militar e ditadura não são questão de semântica. São substantivos da história.
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