- Folha de S. Paulo
Ruptura da ordem constitucional em 1964 não deve ser descrita de outra forma
A mente de cada indivíduo constitui um universo próprio, que opera sob um conjunto único de paixões, condicionamentos e preferências. Além disso, em termos filosóficos, demonstrar a existência de uma realidade externa objetiva e cognoscível permanece um desafio irrealizado. Nesse contexto, em que até o estatuto de verdade das ciências duras se torna precário, o da historiografia desmancha no ar.
Isso significa que devemos abraçar de vez o relativismo? Está autorizado o vale-tudo hermenêutico, que permite descrever o mesmo conjunto de eventos como golpe ou como sucessão dentro da lei? Eu não iria tão longe.
Pragmaticamente, creio que faz sentido supor que palavras e definições conservam valor mais ou menos estável, que acessamos através de uma intersubjetividade comum. Nem todos concordarão sempre com tudo, mas não é desprezível o número dos que aceitam bem aquilo que se convencionou chamar de fatos, isto é, juízos empiricamente verificáveis, como o de que a água ferve a 100°C ao nível do mar.
É filosoficamente frágil, admito, mas esse acordo intersubjetivo já deu mostras de ser útil. Ele está na raiz da revolução científica, que tanto fez pela humanidade, e de alguns consensos políticos importantes.
E, nesse estranho mundo em que a linguagem significa algo, a ruptura, “manu militari”, da ordem constitucional vigente, como ocorreu em 1964, precisa ser descrita como golpe. E o período de governos autoritários que a sucedeu, em que as principais eleições diretas foram suspensas, liberdades civis, suprimidas, e em que agentes do Estado torturavam e matavam concidadãos, à revelia das leis editadas pelo próprio poder central, não comporta outra designação que não a de ditadura.
Podemos discutir até o fim dos tempos se o que ocorreu foi bom ou ruim para o país —esse é terreno legitimamente aberto a especulação—, mas não que houve um golpe seguido de duas décadas de ditadura.
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