O presidente Jair Bolsonaro seguiu suas inclinações pessoais e assinou um decreto de flexibilização de porte de armas que equivale a um estatuto do desarmamento. O decreto inclui várias profissões que poderão ter e portar armas sem precisar comprovar a necessidade, de agentes de trânsito, advogados, caminhoneiros, a jornalistas envolvidos em reportagens policiais. A organização não governamental Instituto Sou da Paz calculou o universo potencial de cidadãos que poderiam optar por andar armados segundo as novas regras: 19 milhões de pessoas. Só de advogados há 1,2 milhão em exercício no país, pelos números da OAB.
O ato do presidente dá sentido a seu gesto de fazer "arminhas" com as mãos, mesmo ao lado de crianças. Agora é permitido que, com autorização de um dos pais, crianças e adolescentes possam frequentar aulas de tiros, quando antes era indispensável autorização judicial. Bolsonaro, mesmo em sua residência oficial, dorme com uma arma ao lado da cama. Projeto de lei apresentado pelo deputado Eduardo Bolsonaro (o filho 03) autoriza portadores legais de armas a embarcarem armados em aeronaves e a utilizá-las em caso de necessidade (O Estado de S. Paulo, ontem).
O decreto já detonou uma batalha judicial, com advogados considerando-o inconstitucional. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, já requereu análise de sua constitucionalidade. A questão mais relevante, claro, são as consequências em um país em que 71,1% dos homicídios são cometidos com armas de fogo.
O ministro da Justiça, Sergio Moro, que não gostou da ideia, disse que o assunto não dizia respeito à segurança pública e que Bolsonaro estava cumprindo promessa de campanha. Se multidões passarem a andar armadas pelas ruas não for questão de segurança pública, poucas outras o serão. O Estado detém o monopólio da violência, que está sendo agora erroneamente democratizado pelo presidente da República.
O decreto contraria o espírito do Estatuto do Desarmamento (lei 10826, de 2003), e o resultado de pesquisas recentes sobre o assunto. Contraria também a inclinação dos eleitores de Bolsonaro (Folha de S. Paulo, 15 de janeiro). Entre os eleitores em geral, 60% são contrários a facilitar o acesso a armas, ante 30% favoráveis. Entre eleitores do presidente, apesar dos seguidores mais fiéis aprovarem a flexibilização (73%), os demais não. Assim, o cumprimento de promessa eleitoral segrega o presidente da maioria dos que nele votaram, entre eles o enorme contingente dos que votaram útil, em troca da satisfação da franja mais radical de seus apoiadores.
Os defensores da flexibilização argumentam que o Estatuto do Desarmamento não diminuiu o crime praticado com armas, o que não é verdade, ou toda a verdade. Os números do Atlas da Violência 2018 mostram que esse tipo de crime se estabilizou no alto nível de 71,1% dos homicídios entre 2003, quando o estatuto passou a viger, e 2016. Isto é, quebrou uma possível progressão da escalada de crimes por pessoas armadas. Os defensores do estatuto não estabelecem causalidade, mas correlação entre o aumento dos homicídios com armas e a maior ou menor facilidade de se obtê-las.
Mas os defensores da flexibilização terão mais dificuldades para provar suas teses, pois não há qualquer evidência respeitável, em estudos domésticos ou internacionais, que sequer mostrem a mera correlação entre a facilidade para ter armas e a diminuição dos crimes - argumento em que pesadamente, e sem razão se apoia o presidente.
O decreto ampliou também o cardápio de armas, permitindo a posse daquelas que antes eram de uso restrito, isto é, que cidadãos possam ter armamentos de maior poder letal até mesmo do que a própria polícia. O trabalho das milícias, que encontravam formas ilegais de obter armas fora do país, foi facilitado pela permissão à sua importação.
O estímulo ao uso de armas pelo cidadão pressupõe que o Estado não é capaz de proteger sua vida e seus bens. A solução correta é aparelhar o Estado e seus órgãos para agir com eficácia - há centenas de sugestões e práticas bem sucedidas a respeito - e não armar parte da população. Não é preciso ser astrólogo para saber que crimes fortuitos se multiplicarão - briga de vizinhos, de casal, de torcidas de futebol, crianças acidentadas, feminicídios etc. Estudos feitos nos EUA mostram que raramente a arma é usada em autodefesa, mas frequentemente como meio ofensivo.
O Congresso brasileiro tem como corrigir o decreto e os desvarios do presidente e deveria fazê-lo com urgência.
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