- O Globo
‘Havia uma criança na Califórnia, que pertencia à segunda turma da integração das escolas públicas, e ela foi conduzida de ônibus à escola todos os dias. Essa criança era eu.” O depoimento da senadora Kamala Harris, 55 anos, deixou uma marca no primeiro debate televisionado entre os pré-candidatos presidenciais democratas nos EUA. Os democratas movem-se para a esquerda, sob aplausos da militância mobilizada, sinalizando o caminho da reeleição de Donald Trump.
O chamado busing foi um expediente amparado pelos tribunais para promover a dessegregação racial nas escolas, a partir do final da década de 1960. Crianças negras eram transportadas a escolas antes segregadas em ônibus gratuitos.
Harris não recordou sua infância para celebrar o movimento pelos direitos civis, mas para cravar uma seta no rival Joe Biden, o vice de Barack Obama e ainda favorito à nomeação partidária. Biden, um moderado de 76 anos, começou sua carreira política durante a difícil ruptura de seu partido com as políticas segregacionistas. Mais de quatro décadas atrás, ele apresentou um projeto de lei contrário ao busing. Os democratas que tentam puni-lo pelo pecado do passado distante nada aprenderam da tragédia eleitoral de 2016.
A lição estava clara para Obama. Na encruzilhada decisiva de sua primeira campanha à Casa Branca, em março de 2008, ele pronunciou o discurso “Uma mais perfeita união”, que respondia a controversas declarações de seu antigo pastor, Jeremiah Wright. Nele, o “candidato negro” conclamou os americanos à unidade para enfrentar dilemas “que não são negros ou brancos ou latinos ou asiáticos mas que nos confrontam a todos”. Hillary Clinton não soube seguir a trilha desmatada por Obama, sucumbindo à pressão multiculturalista da militância partidária. Cairão os democratas na mesma armadilha uma segunda vez?
Não que só Biden seja capaz de derrotar Trump. Três anos atrás, Trump chegou à Casa Branca perdendo no voto popular por margem de quase 3 milhões de votos. As sondagens indicam que, apesar do ciclo de crescimento econômico, o presidente experimenta consistente reprovação majoritária. Há uma maioria que rejeita, por princípio, o nacionalismo extremado, a arrogância isolacionista, os modos repugnantes e os discursos asquerosos do herói de Bolsonaro. Mas isso não garante o triunfo democrata no Colégio Eleitoral de 2020.
Obama descreveu-se como mestiço e, com a Constituição entre as mãos, falou para todos os americanos. Harris, filha da união de uma indiana com um jamaicano, descreve-se exclusivamente como negra, desperdiçando a oportunidade de falar, em primeira pessoa, sobre os cruzamentos de histórias e origens que formaram a nação americana. A submissão ao discurso identitário conduz os democratas ao labirinto da política de minorias: negros, latinos, asiáticos, nativos, mulheres, LGBT. No imenso vácuo aberto pela religião secular do multiculturalismo, Trump dirige-se à maioria de americanos brancos agitando a bandeira nacional e o “America First”. A receita testada pode funcionar novamente.
Não é uma questão de esquerda ou direita. A jovem deputada Alexandria Ocasio-Cortez define-se como socialista e defende ideias típicas da social-democracia europeia, mas escapa ao molde do discurso identitário. Numa entrevista ao “The New York Times”, ela revelou que seus ancestrais distantes, judeus sefarditas, fugiram da Inquisição espanhola, estabelecendo-se em Porto Rico. E descreveu os porto-riquenhos como uma complexa mistura: “Não somos uma coisa única. Somos negros, indígenas, hispânicos, europeus.” Não há ideia mais corrosiva para o nacionalismo reacionário e nativista que a de mistura.
Mas, para sorte de Trump, a militância democrata continua seduzida pela aquarela fragmentária do multiculturalismo.
Há muito em jogo na eleição presidencial americana de 2020. A reeleição de Trump dissolveria de vez o consenso ocidental do pós-guerra que sustenta as sociedades abertas, plurais e tolerantes. A economia, por si mesma, não assegurará um novo triunfo trumpiano. Para tanto, será preciso o concurso de Kamala Harris e dos seus.
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