- Folha de S. Paulo
O povo se expressa pela manifestação do Legislativo
Observei, ao longo do tempo, que muitos entendem que autoridade é uma pessoa física. Presidente, governadores, senadores, deputados, prefeitos, vereadores, juízes e até outras categorias são (ou se acham) autoridades, segundo o uso comum. Não são. São, isto sim, autoridades constituídas. E constituídas pela única autoridade legítima nos estados democráticos: o povo.
Todo poder emana do povo não é regra de palanque político, de momento eleitoral. É regra jurídica, que diz quem manda no Estado. E, a partir daí, quem manda constitui autoridades por eleições ou por vias legalmente estabelecidas. Estas, autoridades constituídas, exercerão funções definidas na Lei Maior: legislação, execução e jurisdição. Vejam que a lei criadora do Estado é fruto da vontade de um povo determinado. Por isso, costuma-se dizer que ela expressa a soberania popular.
Soberania, por sua vez, é vocábulo que vem de soberano, supremo e incontestado governante, como ocorria no Estado absolutista. Significa que não encontra contraste. É incontrastável. Juridicamente é a capacidade de querer coercitivamente, fixando competências, direitos e deveres. E sanções quando for o caso. É o que faz a Lei Maior, a Constituição. Portanto, desde o nascimento do Estado de Direito, verifica-se a certeza da dicção: autoridade é o povo.
É quem titulariza e defere o exercício do poder constituinte originário, cuja vontade prossegue na elaboração legislativa infraconstitucional. A derivação se dá por meio de leis nascidas no Parlamento ou, no nosso sistema, por medidas provisórias. Portanto, depois de nascido o Estado por meio da Constituição (que é ditada, no geral, pelos representantes populares), é o Legislativo que passa a expressar a vontade popular. Por meio, naturalmente, dos atos normativos que edita.
Nele, Legislativo, estão presentes os representantes do povo. Repito: única autoridade do Estado. Assim, quando se edita a lei, esta é que revela a autoridade. Nesse sentido, o Legislativo é o primeiro poder do Estado. Ele, legislador, só pode fazer aquilo que está escrito na Lei Maior. E a legislação é o ato deflagrador da atividade jurisdicional e executiva.
A jurisdição, “juris dicere”, significa aplicar o direito posto pelo legislador na solução de controvérsias. E o Executivo executa o disposto na lei. Tanto é assim que a competência para regulamentar a lei por meio de decreto não pode ultrapassar os seus limites sob pena de este ser anulado por ato normativo, o chamado decreto legislativo. Em outras palavras, o Judiciário e o Executivo (ressalvada a hipótese da medida provisória) não são deflagradores da atividade estatal.
Têm o Executivo e o Judiciário a iniciativa para provocar a deflagração. Tem o Executivo ainda competência de impedir o ingresso da lei ou de parte dela na ordem jurídica por meio do veto. Mas não tem a palavra definitiva, pois o veto pode ser derrubado pelo Legislativo. De igual maneira, o Judiciário. Este pode dizer —em tarefa importantíssima— o que é lei e o que não é.
Explico: em ação direta de inconstitucionalidade ou mesmo em ação que questione a constitucionalidade de um ato normativo, oferecida em litígio individual ou coletivo, pode fazer banir do sistema lei que contrarie a Constituição. O mesmo pode dar-se na ação direta de constitucionalidade. E na arguição de descumprimento de preceito fundamental.
É por isso que, quando as ruas se manifestam, quem deve vocalizar essa voz (afinal, é o povo) é o Legislativo após examinar o conteúdo e as circunstâncias das postulações. Executivo e Judiciário poderão aumentar essa sonoridade. Poderão somar-se à voz popular propondo a modificação normativa. Modificada, passa-se a aplicá-la.
Afinal, a mensagem dada pela Constituição, embora crie três órgãos do Poder, é que o povo na democracia se expressa pela manifestação do Legislativo. Portanto, a autoridade está na lei, não nas pessoas constituídas pela vontade popular. Não é sem razão que a Constituição estabelece que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer qualquer coisa senão em virtude de lei, elevando-a às culminâncias da atividade estatal.
Peço escusas àqueles versados em razão da obviedade do que escrevi. É que ele serve de alerta no momento em que nem todas as autoridades constituídas se pautam pela Carta Magna e pelas leis. Até porque, muitas vezes, consideram-se acima delas. E isso é o que cria a chamada “insegurança jurídica”. E, consequentemente, a instabilidade institucional, circunstância indesejada não só pelos cidadãos comuns como pelos investidores, nacionais ou estrangeiros.
*Michel Temer, ex-presidente da República (2016-2018)
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