- Valor Econômico
O mais correto seria o governo reclassificar a aposentadoria rural, transformando-a em programa social
Após as eleições, defendi que seria equivocado retomar a discussão da proposta do governo anterior para a Previdência Social, naquele momento já bastante diluída. No início deste ano, voltei a argumentar que seria melhor que o atual governo encaminhasse uma nova proposta, descartando a versão disponível no Congresso. A decisão de encaminhar um projeto com impacto fiscal muito maior do que o da alternativa anterior e a aprovação na Comissão Especial da Câmara dos Deputados de uma versão cuja diluição não foi tão expressiva comprovam que essa foi a estratégia correta. A agora provável aprovação no plenário na próxima semana seria outra vitória significativa.
A forte expansão nos últimos anos do déficit do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) - que atende os trabalhadores do setor privado - deve-se, em grande parte, à redução da taxa de natalidade, ao aumento da esperança de vida, à alta informalidade no mercado de trabalho privado, aos mecanismos que permitem que os trabalhadores rurais posterguem o início da contribuição ao sistema, ao pagamento de benefícios após uma certa idade para os trabalhadores que pouco ou nunca contribuíram para a Previdência Social e às condições pouco restritivas na concessão de pensões e benefícios.
Essa dinâmica explica a razão de a economia com a reforma depender muito da elevação da idade mínima para a aposentadoria, da imposição de uma regra de transição dura, do aumento do tempo de contribuição para todos os participantes, em particular os do sistema rural, da redução de benefícios para os que contribuíram de forma insuficiente e de condições menos flexíveis no pagamento de pensões e benefícios.
A proposta aprovada na Comissão Especial referente ao RGPS peca ao não alterar as condições para a aposentadoria rural e nem os pagamentos para os que pouco contribuem para o sistema previdenciário. O mais correto seria o governo reclassificar essas despesas, transformando-as em programas sociais, em vez de registrá-las como gastos previdenciários. Isso aumentaria a transparência dos gastos públicos, haja vista que a aposentadoria rural e o Benefício de Prestação Continuada representam muito mais uma transferência do que uma previdência. A sociedade precisa escolher, em última instância, quais os programas sociais a serem mantidos pelo governo e, também, como pagá-los.
Encontrar essa fonte de recursos, porém, não é trivial. A maioria é favorável à concessão de benefícios, ainda mais se for para o seu próprio deleite. Por outro lado, muitos se rebelam contra impostos incidentes sobre seu segmento. O risco é de a reclassificação e a consequente redução do déficit do RGPS tornarem mais difícil o convencimento da sociedade sobre a necessidade de uma reforma.
Representantes do governo afirmam que a reforma previdenciária representa uma luta contra privilégios. Sob certa ótica, essa afirmativa é correta. A população idosa é proporcionalmente menor no Brasil do que em muitos países e, ainda assim, as despesas previdenciárias são muito maiores, mesmo comparando com vários países desenvolvidos. Uma parte substancial dos benefícios sociais no País é paga a famílias que não são pobres, reduzindo o efeito sobre a pobreza. A desigualdade seria menor se esses benefícios fossem destinados aos jovens. O governo alega que essa é mais uma razão para aprovar a reforma previdenciária.
Há, porém, algumas ressalvas à alegação de luta contra privilégios, especialmente quando se analisam propostas associadas ao Regime Próprio da Previdência Social (RPPS), que atende ao funcionalismo público.
Uma das ressalvas é a inclusão de uma regra de transição para os servidores públicos. A proposta aprovada aumenta a idade mínima para aposentadoria de 62/65 anos (mulheres/homens), com regra de transição com idade mínima inicial de 56/61 anos e tempo mínimo de contribuição de 25 anos, sendo pelo menos 10 anos como servidor público e cinco no cargo. A transição é dada por uma pontuação que soma idade e tempo de contribuição, começando em 86/96 pontos e terminando em 100/105 pontos, com elevação de um ponto a cada ano. Em uma classe repleta de vantagens, entre as quais a estabilidade no emprego, é frágil defender essa regra sob a alegação da garantia de igualdade de direitos aos servidores públicos.
A minha maior ressalva é que a proposta mantém para os funcionários que ingressaram no serviço público até 2003 os benefícios da aposentadoria pelo último salário recebido na ativa (proporcionalidade) e dos proventos ajustados conforme a remuneração do ocupante da mesma posição exercida quando da sua aposentadoria (paridade). A proporcionalidade é injusta, pois não há esse privilégio no setor privado brasileiro e nem na maioria dos países. O correto seria o servidor manter o benefício proporcionalmente ao número de anos no serviço público frente ao tempo ainda necessário para sua aposentadoria. A parcela remanescente acompanharia a regra existente para os servidores ingressos após 2013, que passaram a contribuir para a Fundação de Previdência Complementar do Serviço Público Federal para receber aposentadoria superior ao teto do RGPS. A paridade também é inaceitável. Não há nenhuma justificativa para que eventuais ganhos de produtividade dos funcionários na ativa sejam repassados para os aposentados. Essas duas regras pressionarão as despesas previdenciárias por várias décadas, pois a quase totalidade dos funcionários que se aposentará nos próximos 10 anos ingressou no serviço público antes de 2003.
Em suma, a estratégia do governo para a reforma da Previdência Social mostrou-se vitoriosa. Apesar de a economia gerada não ser suficiente para reverter o déficit fiscal, sua aprovação será crucial para evitar uma maior deterioração das contas públicas e das condições econômicas. Houve avanços importantes, mas não foram amplos o suficiente para extirpar alguns privilégios que não são compatíveis com os conceitos de justiça social e de igualdade para todos.
*Nilson Teixeira, Ph.D. em economia pela Universidade da Pensilvânia
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