- Valor Econômico
Muitos olham o futuro com temor e tremor
Há poucos dias, o embaixador no Brasil de uma das maiores economias do mundo abandonou sua língua materna para expressar, ao fim de um discurso contundente, o que considerava ser um voto de esperança: ler a frase "Make the planet great again" nas páginas de um jornal. Bem-humorado, mas sem perder de vista a gravidade do momento, o comentário traduzia o mal-estar deste fim de década, quando chefes de Estado de nações democráticas atacam o ambiente, as instituições, a ciência e a liberdade de imprensa, apenas para citar os alvos mais frequentes.
O contraponto ao slogan "make America great again", da campanha de Donald Trump, é evidente. Enquanto o embaixador mira o futuro de um planeta sustentável, o presidente americano parece nostálgico de um país menos diverso, mais branco, com menos imigrantes, menos mulheres em posição de poder, mais poluente e com comércio internacional mais modesto. "Parte do desejo de Trump de recriar um passado grandioso leva o país a lugares extremamente obscuros", já disse Alan Blinder, ex-vice-presidente do Federal Reserve.
Mas qual é o futuro apontado pelo progresso? Apesar de estarem mais ricas, mais saudáveis e mais seguras do que em qualquer outro momento, como revela o professor de Harvard Steven Pinker, as pessoas parecem mais infelizes e mais pessimistas sobre o amanhã, especialmente nos países desenvolvidos. De onde vem tanto ódio manifesto no populismo, no terrorismo e na piora do bem-estar? Por que, mesmo com todo o ganho material, essas pessoas se sentem mais inseguras?
Esses questionamentos foram feitos por Minouche Shafik, diretora da London School of Economics (LSE), no Centro de Debate de Políticas Públicas (CDPP), em São Paulo, no primeiro semestre. Para ela, as populocracias não têm as respostas para as grandes questões que se apresentam. "Voltar ao passado nunca é possível", disse. A afirmação é óbvia, mas o cenário tem exigido reforçar o básico.
Egípcia com carreira acadêmica nos Estados Unidos e na Inglaterra, Shafik observou que algumas explicações são recorrentes para o desconforto atual: o aumento da desigualdade, as questões de identidade nacional e o temor com o futuro das nações em virtude das mudanças radicais provocadas pela tecnologia e pela demografia.
Um mundo menos homogêneo, hiperglobalizado e afetado pela austeridade imposta pela crise de 2008 teve como resultado um repúdio às elites, ao pluralismo e às democracias liberais baseadas em regras internacionais que permitiram tamanho progresso em relação aos nossos ancestrais.
Como a desigualdade torna as pessoas "menos generosas e menos tolerantes", Shafik adicionou outra questão-chave para a anomalia atual, o colapso no contrato social. Ou seja, um abalo nos direitos e deveres do cidadão, no pagamento de impostos em troca de serviços públicos e na forma como a sociedade enxerga os mais velhos, os mais jovens e os desvalidos.
Em toda sociedade, há uma divisão de responsabilidades entre o Estado, o mercado, as famílias e o terceiro setor, destacou ela a uma plateia de banqueiros, economistas e advogados na passagem pelo Brasil. É disso que a ex-vice-presidente do Banco Mundial e ex-vice-presidente do Banco da Inglaterra costuma falar, sempre em tom de apelo: é preciso pensar um novo contrato diante de um novo mundo.
Ela dá algumas pistas do que pretende. Defende, por exemplo, uma economia mais justa, com mudanças tributárias e outros benefícios compensatórios. Considerando que a desigualdade da riqueza tornou-se ainda maior do que a de renda em muitos países, parece inevitável, para a diretora da LSE, que se aplique imposto mais alto sobre herança, terras e imóveis. Nos anos 80 e 90, reformas em países da OCDE reduziram o Imposto de Renda de pessoas físicas e jurídicas no topo da pirâmide, mas elevaram impostos sobre valor agregado. Recentemente o governo Trump promoveu um dos cortes de impostos mais regressivos na história americana.
Outra ideia apresentada é a de que se corrija a enorme transferência de renda do trabalho para o capital, também por meio de tributação. Seu diagnóstico aponta ainda a necessidade de um piso para a população de baixa renda para garantir que possam desfrutar de um padrão de vida razoável, mesmo em funções com baixa remuneração. Por fim, prescreve subsídios salariais, créditos de Impostos de Renda ou salários mínimos mais altos.
Já que uma desigualdade menor é favorável para o crescimento da economia, segundo indica pesquisa do FMI, reformas dessa natureza poderiam ter ainda como efeito o restauro do lento crescimento em muitos países.
Outra peça importante nesse ambiente de pessimismo e insegurança são as transformações no trabalho. Segundo dados da McKinsey, cerca de 15% da força de trabalho global pode desaparecer entre 2016 e 2030. Para piorar o quadro, pela combinação de avanço tecnológico e maior competição, houve a uma queda nos salários e as oportunidades são maiores para funções mais precárias e que exigem menos qualificação.
"Enquanto uns encontram grandes vantagens nos acordos de trabalho flexível, outros vivem uma séria insegurança econômica. Muitos jovens em empregos temporários enfrentam um período de 'adolescência prolongada'", analisou. "Apesar de vivermos num mundo de paz e prosperidade sem precedentes, muitos olham o futuro com temor e tremor."
Com o título de "dame" concedido pelo governo britânico, Shafik foi aplaudida no CDPP e seus papers passaram a ser compartilhados por economistas do primeiro time e citados nas rodas de virtuais candidatos à Presidência de corte liberal. "Foi uma recepção muito favorável. Todos admiramos a qualidade da análise econômica para os problemas políticos", disse um economista.
Um novo contrato social, pondera ela, deve ser construído levando em conta as dinâmicas de cada país, mas à luz de movimentos internacionais e diante de desafios que podem comprometer o voto de esperança do embaixador, como aquecimento global, pandemias e cibersegurança.
Esse debate é mais do que oportuno no Brasil. Além da agenda da reforma tributária e da controvérsia na política ambiental, o país vive o mais longo ciclo de aumento da desigualdade. São 17 trimestres em que a concentração de renda cresceu, mostra estudo de Marcelo Neri, da FGV. O desemprego é a maior causa. De 2014 a 2019, o 1% mais rico da população ganhou mais 10,1%, enquanto a metade mais pobre perdeu 17,1%. Para quem pretende mirar o horizonte e ver o futuro, parece urgente redefinir o que é ser cidadão neste século e quais são as responsabilidades de cada um, como cidadão, com o próximo. Esta é a conclusão de Shafik.
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