- Folha de S. Paulo
Fala de Bolsonaro na ONU faz o Brasil se transformar em um figurante sem voz
No português rudimentar e com a fala truncada que são a sua marca, o presidente Bolsonaro discursou na sessão de debate-geral da assembleia das Nações Unidas, na terça-feira.
O evento que dá início à reunião anual dos representantes dos 193 países da organização não é um momento de ação. Ali não se tomam decisões sobre a guerra ou a paz, nem mesmo sobre quaisquer outras grandes questões mundiais.
Na sessão de debate-geral, tem lugar um ritual simbólico em que estados membros se apresentam, expressam as visões de cada qual sobre os problemas que ultrapassam as suas fronteiras e reafirmam a disposição de cooperar para resolvê-los.
Desde 1946, o Brasil é o primeiro a tomar a palavra. Graças ao embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, organizador de “O Brasil nas Nações Unidas — 1946-2006”, temos acesso à primorosa edição comentada dos pronunciamentos de todos os representantes do país ao longo de 60 anos.
Apesar de diferenças de contexto, de orientação política doméstica, de percepção do alcance possível da influência internacional e das prioridades de política externa de diferentes governos, nota-se significativa coerência na maneira como o país se apresentou e como articulou suas demandas.
Aos pronunciamentos nunca faltou a defesa do multilateralismo, por fornecer a armação institucional mais propícia à solução negociada dos interesses em conflito e à organização de coalizões dos menos poderosos. Esteve também sempre presente a defesa de transformações da ordem internacional, em geral, e das organizações multilaterais, em particular, de forma a assegurar espaço maior às nações emergentes. Por esta razão, a ampliação do número de membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU foi reivindicação brasileira sempre reiterada.
Defendendo os interesses nacionais, como os viam, os representantes do país muitas vezes trataram de dar voz também às nações que não faziam parte do clube das potências mundiais e, assim, ensaiar papel de liderança.
Às vésperas de sua viagem, Bolsonaro, possuído pela arrogância dos ignorantes, afirmou que faria um discurso diferente das generalidades ditas pelos que o antecederam.
Cumpriu o que prometeu. Falou para a sua turma de sempre, na linguagem de sempre. Em seu discurso defensivo e belicoso, não é possível encontrar menção aos problemas mundiais prementes, às formas de encaminhá-los de modo mais favorável aos múltiplos interesses do país e tampouco ao papel que podemos desempenhar. E assim faz o país se transformar em figurante sem voz.
*Maria Hermínia Tavares de Almeida, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
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