- Valor Econômico
Os sinais de um laboratório agreste da política nacional
Na campanha municipal de 2016, a então deputada estadual de Pernambuco Raquel Lyra (PSDB) colocou em seu programa de governo para a Prefeitura de Caruaru o compromisso com a defesa da população LGBT contra a violência e a evasão escolar. A promessa entrou num telefone sem fio e incendiou as igrejas evangélicas, obrigando a candidata a fazer um encontro com 80 pastores para lhes explicar que o terceiro banheiro nas escolas públicas não era meta de seu governo.
Ali estava um laboratório microscópico do fenômeno que, dois anos depois, arrebataria o país. No primeiro turno, Raquel derrotou um ex-delegado da Polícia Civil, Erick Lessa (PP), que fez campanha ora como um Sergio Moro do Agreste, prendendo vereadores por extorsão e médicos por venda de cirurgias no SUS, ora como o candidato da bala e da “Bíblia”. E, no segundo, o deputado estadual Tony Gel (MDB), radialista que já governara a cidade no início do século embalado no slogan “sem panela, sem penico, sem colchão, dá-lhe João”.
No primeiro turno das eleições presidenciais de 2018, Jair Bolsonaro venceu com folga Fernando Haddad no maior município do interior do Estado em que nasceu o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No segundo turno, o presidente perdeu para o candidato petista, mas com uma votação bem superior à média do Estado.
A um ano das eleições municipais de 2020, Caruaru volta a se transformar em um laboratório da política nacional. A redução da violência no município não beneficia Bolsonaro, mas empurra o favoritismo da reeleição de Raquel. De acordo com pesquisas não registradas do Instituto Travessia, o presidente já não repete, na cidade, a votação obtida em 2018.
Bolsonaro não teve e não faz por onde ter o voto da classe D, que tem no Nordeste seu maior reduto. Elegeu-se pela incursão bem-sucedida na faixa de renda de R$ 1,5 mil que, segundo Bruno Soller, do Travessia, engloba 28% do eleitorado nacional.
O presidente deve sua votação em Caruaru a uma presença mais encorpada de eleitores desta faixa de renda na cidade. No entroncamento de duas rodovias, Caruaru é a sede do maior polo têxtil da região, que tem desde fábricas com até 1 mil empregados até casais que se revezam em turnos de 12 horas para fazer render uma só máquina de costura.
Colocar o pescoço acima da linha d’água não basta para nadar de braçada à espera do prometido tsunami de investimentos. Ninguém sai do lugar sem políticas públicas. Foi mais ou menos isso que Raquel Lyra disse aos correligionários que comandam o PSDB ao ouvir que os planos do partido para tomar a dianteira de Bolsonaro se restringiam ao apoio às reformas e à liberalização da economia.
Depois de votar em Lula e Dilma de 2002 a 2010, Raquel Lyra foi de Marina Silva e Aécio Neves em 2014 e, no primeiro turno de 2018, aderiu aos 5% de Geraldo Alckmin. No segundo, anulou. Sua sucessão no próximo ano e seu voto em 2022 dão, a partir do chão da política, as chances de uma alternativa de centro se firmar frente ao bolsonarismo.
Raquel é sobrinha de Fernando Lyra, que costurou a aliança democrática de Tancredo Neves e dele foi ministro da Justiça, e filha de João Lyra, governador do Estado depois da desincompatibilização de Eduardo Campos do cargo para a disputa presidencial de 2014. Migrou do PSB para o PSDB quando teve negado o apoio para a disputa municipal em 2016.
A prefeita tucana é o que há de mais à esquerda numa cidade em que o PT é inexpressivo. Fala mais da educação, área em que tem 62% de aprovação, do que de obras. Foi citada pelo senador Tasso Jereissati (CE), em entrevista ao Valor, como uma das promessas do PSDB e, aos 40 anos, é engajada nas redes de renovação da política, como o Raps e o RenovaBR.
Tem, nas pesquisas da cidade, uma avaliação inversa à de Bolsonaro. O que o presidente tem de péssimo, ela tem de bom. Apesar disso, fala do bolsonarismo com a cautela de quem, numa federação contingenciada, recebe água das adutoras de 15 em 15 dias, tem apenas 24% de esgoto tratado e ainda deve 30% das 8 mil creches prometidas.
O partido do presidente ainda não tem candidato competitivo na cidade, mas todos estão em busca do eleitor desgarrado do bolsonarismo. O do Agreste pernambucano, apesar de não ter dado sinais de para onde pretende ir, já se mostrou insatisfeito com quase tudo, a começar da flexibilização do estatuto do desarmamento.
Ao se eleger, a ex-policial federal apostara na direção inversa. Raquel Lyra lançou seu programa de governo em 2016 no morro da cidade em que os tiroteios faziam toda noite parecer festa junina. Os homicídios reduziram-se em um terço. O morador de Caruaru ainda tem cinco vezes mais chance de ser assassinado do que o de São Paulo, mas a queda foi o suficiente para a maior preocupação do eleitor migrar da violência para a saúde.
O desempenho na integração da segurança nas políticas públicas do município rendeu à prefeita a coordenação do tema no programa de Alckmin em 2018. Às vésperas do seu lançamento, porém, o convite se revelou simbólico. O programa era quase uma cópia do de Bolsonaro. Prescrevia a liberação de armas no campo, redução da maioridade penal, endurecimento de penas e construção de presídios.
As críticas aos rumos tomados pelo PSDB e a familiaridade com o entorno dos movimentos de renovação política que apoiam Luciano Huck sugerem uma revoada. Quando é confrontada com essa perspectiva, porém, Raquel Lyra lembra do convite recebido pelo Rede, de Marina Silva. Tivesse aceito, não seria prefeita da cidade.
Com o reforço das máquinas partidárias a partir da nova lei, a terceira via à polarização entre o PT e o bolsonarismo dificilmente poderá ignorá-la. O que a lente de aumento sobre Caruaru mostra, porém, é que o eleitor, mais do que nunca, busca uma vacina contra a ideologização. Na primeira eleição da era bolsonarista, sairá na frente quem mostrar serviço para reduzir os danos de sua turbulenta travessia.
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