- O Estado de S.Paulo
Ao contrário do que acontece no Brasil, partidos e Judiciário enfrentaram a grave crise
Poderosas, as memórias de olfato nas noites desta semana na esplêndida capital da Catalunha jogam a gente de volta para junho de 2013 em São Paulo. É o cheiro de lixo queimando nas ruas, plástico se derretendo no calor das chamas, sirenes das tropas de choque correndo de um canto para o outro das ruas atrás de bandos de mascarados que improvisam barricadas, provocam a polícia, mandam selfies e stories nas redes sociais enquanto “lutam”, dispersam, correm e se juntam no próximo quarteirão.
Um bocado de gente está ali nas ruas do centro só para olhar. Há alguma simpatia com a causa geral, ainda que o público se mantenha a prudente distância do fogaréu e dos jovens encapuzados brigando com a polícia. No caso de Barcelona, as manifestações foram convocadas para protestar contra as penas de prisão impostas segunda-feira última pela Justiça espanhola a nove líderes e articuladores da tentativa de separar a Catalunha do resto do país, há uns dois anos. A independência da região, afirmam os juízes na condenação, nunca passou de uma “quimera”, criada e explorada por políticos.
Talvez seja uma boa descrição do que aconteceu, mas o ponto relevante é o fato de que o “independismo”, como é chamado aqui o separatismo catalão, já tinha sido derrotado politicamente antes da sentença condenatória. O principal fator que circunscreveu a aventura política articulada na Catalunha foi o funcionamento do sistema político partidário espanhol, a grande participação popular em várias eleições subsequentes apesar da crise fiscal e de representatividade que esfacelou forças políticas tradicionais e seus grandes nomes.
A Justiça espanhola precisou de menos de dois anos para o “processo”, como ficou conhecido no país a perseguição, julgamento e condenação dos acusados de violar a constituição ao promover o separatismo da Catalunha. E foi tudo, a julgar pela grande maioria dos comentaristas espanhóis, dentro da lei, do devido processo legal e com a participação direta dos líderes dos principais partidos. De fato, é só mesmo o cheiro do lixo queimando nas ruas, ateado por jovens encapuzados, que lembra São Paulo de 2013.
No Brasil, o esfacelamento do PSL numa disputa entre o presidente e os “donos” da agremiação é antes de mais nada um retrato perfeito da deterioração do sistema partidário brasileiro, seu fracionamento em siglas de aluguel, sua incapacidade de representar diretamente interesses legítimos de grupos definidos (profissionais, regionais, econômicos, culturais, etc.), sua dedicação em converter pedaços da máquina pública em ferramenta para uso próprio. Difícil esperar impulsos políticos de horizonte amplo de agremiações partidárias desse tipo, populares ou não. É um aspecto no qual o Brasil está muito atrás de uma Espanha.
Considere-se também o julgamento “definitivo” que o STF faz da confusão que ele mesmo criou sobre a prisão de condenados em segunda instância. É a expressão acabada do fato da mais alta corte do País ter se transformado numa das grandes fontes da insegurança jurídica. A percepção que se generalizou de um lado (o da Lava Jato) e de outro (quem cobra da Lava Jato respeito aos preceitos legais) é a de que as decisões do Supremo são sempre políticas, ao sabor do momento – como aconteceu em 2016, quando respondia ao ímpeto da Lava Jato, e agora, quando responde ao ímpeto de frear a Lava Jato.
A Espanha andou relativamente rápido no tratamento de um problema político difícil mesmo enfrentando severa crise fiscal e de desemprego. Foi pelo funcionamento de partidos, sistemas políticos e judiciário respeitado. Os mais veteranos vão se lembrar que a experiência espanhola de saída de um regime ditatorial para uma democracia já havia sido uma inspiração para um general presidente do Brasil em 1977 – Ernesto Geisel e sua abertura lenta, gradual e segura. Quem sabe a Espanha acaba sendo uma inspiração mais uma vez.
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