- O Globo
Evo desgastou-se, inclusive nos meios populares. Não satisfeito, quis um quarto mandato. Um golpe claro contra a democracia
Silenciem as críticas, não façam o jogo do inimigo. Nos tempos da Guerra Fria, assim se dizia, entre as esquerdas, de comentários que tinham como alvo as arbitrariedades do socialismo soviético, a repressão na China ou a ditadura de Fidel Castro. Por mais que fossem fundamentadas, não deveriam ser publicadas. Para não dar “armas” ao inimigo.
A advertência reatualizou-se nos últimos anos. Já não se trata da oposição entre capitalismo e socialismo, mas dos embates entre uma extrema direita virulenta e as propostas nacional-estatistas, vigentes nas últimas décadas em nosso continente. A recente crise boliviana evidenciou o fenômeno.
A fúria das elites brancas, o ódio aos pobres e às nações indígenas e o profundo desgosto de conviver com gentes historicamente desprezadas manifestaram-se de forma cruel. Os partidários de “Macho-Camacho”, líder da extrema direita, perpetraram covardias abomináveis, sempre sob a invocação de Deus, da família e da pátria. Acionaram milícias privadas, humilharam pessoas indefesas, cometeram linchamentos.
Face aos protestos populares, chamaram a polícia e as Forças Armadas, autorizadas a atirar no povo, resultando em dezenas de mortos, centenas de feridos e de presos. Os fatos foram documentados, correram mundo, denunciados pelo povo boliviano, por várias instituições e pela opinião pública internacional.
Que sejam investigados, pois os responsáveis diretos e os mandantes dos crimes devem ser julgados e condenados. Entretanto, em muitas áreas de esquerda jogou-se um manto de silêncio sobre as atitudes e as políticas do presidente Evo Morales e de seus correligionários do Movimento ao Socialismo, o MAS. Teriam sido vítimas de um golpe, um a mais, na triste história do país. Suficiente como explicação?
A trajetória de Evo Morales é singular. Nascido indígena, de origem humilde, inteligência fora do comum, destacou-se na luta dos plantadores de coca, os cocaleros, vítimas da política de erradicação do cultivo da coca. Sob o pretexto de combater a droga, extraída da planta, desejavam abolir a própria planta, constitutiva da identidade, da história e dos costumes dos indígenas. Houve protestos.
Evo Morales liderou-os. Tornou-se representante político. Elegeu-se e reelegeu-se presidente da República, algo incomum na história do país. Os dois primeiros mandatos foram anos de prosperidade, marcados por políticas de distribuição de renda e de inclusão social. De melhoria dos serviços públicos. Os direitos e a personalidade histórica das nações indígenas foram reconhecidos e consagrados por uma nova Constituição. Fortaleceu-se então o MAS, convertido em partido majoritário da República.
Mas a tradição nacional-estatista reza que o líder é como um astro-rei, há um só e só um. Evo reivindicou um terceiro mandato. Ganhou-o. Com atitudes prepotentes, desgastou-se, inclusive nos meios populares. Não satisfeito, desejou um quarto mandato. Um golpe claro contra a democracia, pois a Constituição o proibia. Evo afrontou-a, requereu um plebiscito. Foi-lhe concedido. Perdeu. A maioria negou-lhe o direito à nova postulação. Ele insistiu. Foi a um tribunal de amigos e conseguiu o direito a candidatar-se pela quarta vez.
Um despropósito. Apurados os votos, para livrar-se de um problemático segundo turno, tentou mais um golpe, apelando para irregularidades, cedo reveladas e denunciadas. Um escracho. A esta altura, num contexto de protestos e de caos social, pressionado, Evo renunciou e deu o fora do país. Num gesto insólito, renunciaram com ele seu vice e os presidentes da Câmara e do Senado, que eram de seu próprio partido, um abandono, como se tudo dependesse de apenas um só homem. Como se, sem ele, nada pudera existir ou sobreviver. Um desastre político.
Agora, a Bolívia, mal refeita da crise, lambe as feridas, enterra os mortos e espera novas eleições. Na expectativa de que a deletéria tradição de líderes carismáticos saia, senão derrotada, pelo menos criticada. Talvez fosse possível, aí sim, não dar mais armas ao inimigo.
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