- Folha de S. Paulo
Os liberais brasileiros estão dispostos a seguir a trilha de Bolsonaro?
“O governo é um só. Essa divisão que se faz de que o Bolsonaro é um louco e o Paulo Guedes toca uma agenda racional não existe.”
A frase do deputado Rui Falcão, ex-presidente do PT, foi cunhada para a disputa política, mas concentra uma tese. Ele está dizendo que o programa econômico liberal é inseparável do autoritarismo político. Guedes, que tirou o AI-5 para dançar, confere verossimilhança à acusação. O governo é, realmente, um só?
Marilena Chauí inscreve a tese de Falcão numa narrativa histórica. Dirigindo-se, em agosto, à plateia de um debate preparatório ao 7º Congresso do PT, estabeleceu um nexo ousado: “O neoliberalismo não é apenas uma mutação histórica do capitalismo. Ele é a nova forma do totalitarismo. Nós estamos acostumados a encarar o totalitarismo na figura de um líder de massas, o autocrata. Eles desapareceram.
O discurso do ódio agora está sob controle do próprio sistema que rege esses governos. A eficácia desse novo totalitarismo é a sua invisibilidade”.
Revisitadas hoje, depois da adesão de Guedes às invocações autoritárias do núcleo bolsonarista, suas palavras fazem sentido?
Desconte-se a ligeireza conceitual. Traduza-se “neoliberalismo”, um tropo ritual da esquerda, por políticas liberais. Para não queimar no fogo da paixão ideológica os textos clássicos de Arendt e Lefort (este, mentor de Chauí), substitua-se “totalitarismo” por “autoritarismo”. Será verdade que, para ser liberal, o capitalismo precisa suprimir a democracia?
Minha resposta é irrelevante. O que importa é a resposta dos próprios liberais. No rescaldo da polêmica sobre o AI-5, Guedes tentou consertar o estrago propondo que se pratique uma “democracia responsável”.
Ficou pior. A adjetivação da democracia remete a uma tradição autoritária que se estende de Salazar (“democracia orgânica”) a Orbán (“democracia iliberal”), passando por Erdogan (“democracia conservadora”) e Putin (“democracia soberana”). A questão não é acadêmica: os liberais brasileiros estão dispostos a seguir a trilha de Bolsonaro?
Na doutrina liberal, a liberdade política é inseparável da liberdade econômica. Mas os ícones do liberalismo do século 20 flertaram com a cisão. Na sua segunda visita ao Chile de Pinochet, em 1981, Friedrich Hayek afirmou preferir uma “ditadura liberal” a um “governo democrático desprovido de liberalismo”. Disse, ainda, que “uma ditadura pode ser um sistema necessário durante um período de transição”.
Milton Friedman também assessorou Pinochet —e, mais tarde, defendendo-se das críticas, sugeriu que, graças ao programa liberal adotado pelo regime, o Chile acabou se reencontrando com a democracia.
Friedman visitou a China em 1980, entre uma e outra passagem pelo Chile, e voltou em 1988, oferecendo conselhos a Deng Xiaoping e Zhao Ziang. Como Hayek, ele imaginava que a liberdade nasce nos bastidores da economia, difundindo-se eventualmente (naturalmente?) para o palco da política.
Nessa cisão conceitual encontra-se a fresta para a defesa da “ditadura transitória” —e, talvez, de uma perene democracia adjetivada. Guedes bebe nas fontes de um liberalismo inseguro sobre o valor da liberdade política.
A sequência começou antes —repito: antes!— de Lula deixar a cadeia. Partiu de um comando de Olavo de Carvalho, que clamou pelo “fechamento” dos “partidos ligados ao Foro de São Paulo”.
Daí, Jair Bolsonaro mencionou as manifestações chilenas como motivo para convocar os militares às ruas e publicou o célebre vídeo das hienas. Finalmente, Eduardo Bolsonaro implorou por um “novo AI-5”. O núcleo do governo não teme o espectro de protestos mas, pelo contrário, torce por sua materialização, gerando o álibi para uma aventura subversiva.
É nessa encruzilhada que se encontram os liberais brasileiros. Guedes sonha com uma “ditadura transitória”? O governo é mesmo um só?
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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