- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Por causa das confusões criadas pelo bolsonarismo, este é o momento mais perigoso desde o início do seu governo
Após quase um ano de muitas confusões, conflitos e frases bombásticas, muitos se perguntam aonde vai parar o barco conduzido pelo governo Bolsonaro. Não há semana que o presidente ou um de seus ministros diletos não cometa uma gafe ou provoque uma crise. Qual é o sentido de tudo isso?
Há mais de um final possível nesta história, pois embora haja um forte pendão autoritário entre os bolsonaristas, muitas outras variáveis e atores estão no jogo, tornando o seu resultado incerto. Mas uma coisa é certa: a estratégia política presidencial aposta na instabilidade permanente para construir seu projeto de poder.
Ninguém pode dizer que ele não avisou. Desde a campanha presidencial, Bolsonaro anunciou várias ideias hoje consideradas muito controversas ou (em alguns casos) absurdas, porém, muita gente ignorou esses avisos. Para não ficar só no presidente, a família presidencial (mais uma inovação) e seus principais aliados procuram constantemente a polêmica. Pode ser na ONU, no Twitter, no Congresso Nacional, em suma, em qualquer lugar que seja possível espalhar para milhares de pessoas a proposta de que é preciso lutar contra alguém ou contra algo.
Há alguns temas preferidos para iniciar cada guerra comunicacional: luta contra a ideologia de gênero, o Foro de São Paulo, os petistas, os defensores dos direitos humanos, a imprensa, os artistas, o STF, a classe política tradicional e até a República! E quando é preciso acrescentar mais adrenalina nesta cruzada, brigas são criadas até contra os aliados.
Manter-se nesta lógica de guerra, como já escrevi aqui no Valor (17/05), é um dos mantras do bolsonarismo. Mas a estratégia vai além disso: é preciso criar um clima de instabilidade permanente para, num primeiro momento, chocar os interlocutores, e, num segundo momento, mostrar que o governo é perseguido e está do lado certo.
Bolsonaro faz política seguindo um modelo maniqueísta fácil de ser compreendido, que mantém os fiéis sempre alertas e que o coloca como o salvador da pátria frente aos inimigos. O presidente, assim, fica em evidência constantemente. Partindo de um bordão do velho Chacrinha, Bolsonaro criou a sua máxima: confundir para governar.
A opção pela instabilidade permanente coloca muitos dos atores políticos numa situação ambígua. Eles precisam responder regularmente às provocações bolsonoristas, como suas odes ao autoritarismo, mas têm dificuldades de construir e, sobretudo, comunicar sua agenda à sociedade, uma vez que ficam apenas consertando ou criticando as baboseiras e atrocidades produzidas pelo bolsonarismo.
Aqui sofrem mais as lideranças políticas de centro, que têm salvado o governo Bolsonaro ao longo de 2019, seja aprovando reformas impopulares nas quais a Presidência ficou escondida, seja dando broncas no presidente e em seus auxiliares quando cometem uma estripulia, mas ao final passando a mão na cabeça deles.
Vale ressaltar que a opção pela instabilidade permanente não quer dizer que o bolsonarismo não tenha uma bússola ideológica. Há sim uma visão de mundo bastante estruturada em três pilares. O primeiro é um tipo popularesco de liberalismo econômico, traduzido numa ideia de que haverá uma privatização em massa e que os negócios serão libertados de todas as amarras do Estado, inclusive da maioria dos direitos dos trabalhadores.
O segundo pilar ideológico do bolsonarismo é uma concepção conservadora da sociedade que aparentemente bebe em congêneres internacionais, mas que tem fortes laços com a nossa tradição paternalista e escravista: defesa da família por um ângulo machista, apoio a uma visão religiosa fundamentalista, respaldo à violência contra os “marginais e subversivos” e, para fechar, a abertura da caixa de pandora de todos os preconceitos seculares que habitam a cabeça de muitos brasileiros - contra negros, mulheres, LGBTQs e nordestinos.
Completando esse quadro ideológico, existe um autoritarismo político-cultural que alimenta a visão politica do bolsonarismo. Não é só uma tentativa de fazer uma releitura de muitas coisas do regime militar. É um desejo de ter um governo que pode tudo, comandado pelo presidente Bolsonaro e sua família. Seria um governo comandado pelo partido da ordem, que tem o poder, via excludente de ilicitude em GLOs, de evitar manifestações que atrapalham a vida do “cidadão de bem”.
A combinação entre a visão ideológica e a estratégia da instabilidade permanente produz muitas vezes problemas, porque a necessidade de criar confusão no ambiente político leva a extremismos desnecessários. Isso ocorre quando se taxa os desempregados para reduzir impostos de empresas, num arroubo ultraliberal. Também acontece quando o conservadorismo vira racismo explícito, o que pode inclusive afetar negativamente as bases conservadoras dos evangélicos, majoritariamente formados por pretos e pardos. E, por fim, perde a mão na cultura autoritária quando defende o AI-5 por algumas vezes seguidas por diferentes atores do bolsonarismo, gerando um desconforto que tem implicações até nos atores econômicos, temerosos com os efeitos desse autoritarismo.
Embora eficiente para confundir os atores do sistema político e para manter um terço do eleitorado fiel ao bolsonarismo, a estratégia da instabilidade permanente pode gerar problemas na gestão das políticas governamentais. Ela por vezes atrapalha o trâmite do processo legislativo, de modo que, se observamos bem, boa parte da pauta bolsonarista não passou ou não será aprovada pelo Congresso Nacional.
A aposta no confronto e na confusão afeta ainda a inserção internacional do país, reduzindo o grau de confiança que os parceiros estatais e privados tenham no Brasil. E, do ponto de vista econômico, a instabilidade permanente está redundando num estresse desnecessário, que se soma aos riscos da economia internacional e à nossa lentíssima recuperação econômica.
O governo Bolsonaro, como outros, não resume suas políticas públicas em pautas ideológicas. A despeito de ser o mandato mais ideologicamente orientado desde a redemocratização, mais do que a primeira gestão de Dilma, ele também adota medidas pragmáticas que poderiam ser escolhidas por outros partidos, como grande parte da reforma da Previdência enviada ao Congresso ou as concessões em infraestrutura.
Por isso, os arroubos e excessos derivados da instabilidade permanente constituem um empecilho a questões como o ajuste fiscal, que será bem menor do que o desejado por técnicos governamentais por conta da estratégia política escolhida.
Se há esses problemas aqui apontados, por que então permanecer sob a lógica do “confundir para governar”? Três razões justificam essa escolha. A primeira é que estratégia da instabilidade permanente, por ora, consegue segurar um público fiel, que não só aprova o governo, como o defende, tanto nas redes sociais como na vida real. A segunda justificativa é que tal forma de atuação se orienta pela polarização, com sua busca por inimigos e pela luta contra eles.
Nesse jogo, Bolsonaro e seus apoiadores se sentem mais à vontade - e não por acaso o bolsonarismo se sustenta muito na lógica polarizada de boa parte da internet.
A razão mais importante para continuar sob o império da instabilidade é que essa estratégia mantém Bolsonaro como um outsider na luta contra o sistema político tradicional.
Por exemplo, toda a confusão no PSL serviu, ao fim e ao cabo, para se propor um novo partido, cujo formato é disseminado como uma luta contra a forma como as outras legendas funcionam. Do mesmo modo, ele preferiu não ter uma coalizão estável no Congresso, para parecer um renovador do presidencialismo.
É interessante notar que a lógica da instabilidade permanente caiu como uma luva num país em que as principais instituições públicas foram desacreditadas desde 2013 e, sobretudo, pela Operação Lava-Jato. Assim, ao chamar Sergio Moro para o Ministério da Justiça, Bolsonaro trouxe o “pai” do mundo que permitiu a ascensão da politica polarizada e baseada na confusão constante.
O retorno de Lula ao cenário político mexeu com a estratégia bolsonarista de instabilidade permanente. O líder petista vai criticar o presidente sem se preocupar em corrigir seus erros, e, ademais, apresenta uma agenda para se contrapor ao governo e mostrar-se independente dele. Não importa aqui se as ideias lulistas estão corretas, são melhores ou mais factíveis que as propostas de Bolsonaro.
O fato é que a volta de Lula está dificultando o bom funcionamento do modelo estratégico do bolsonarismo porque consegue contracenar no mesmo palco que o presidente em meio à confusão generalizada. Se os partidos de centro quiserem também entrar nesta peça, terão de se mostrar como efetivamente independentes do bolsonarismo e montar uma agenda própria, capaz de atacar os problemas do grande público.
Para manter o controle do processo político, Bolsonaro aposta agora, de uma forma radical e talvez imprudente, que a única forma de retirar o lulismo do palco político, antes dominado exclusivamente pelo presidente, seria disseminar o medo da proliferação de manifestações, cujo único antídoto seria algum tipo de AI-5. Desde o primeiro dia do mandato, este é o momento mais perigoso das instabilidades criadas pelo bolsonarismo.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP
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