sexta-feira, 29 de novembro de 2019

José de Souza Martins* – Muito aquém do jardim

- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

O problema do PT é o excesso de partido e a escassez de política. A longa crise do partido foi configurada com a Carta ao Povo Brasileiro de 2002

Um influente senador do PT declarou há poucos dias que seu partido precisa falar para além do terço que é o de seus eleitores fiéis. Ainda que, fiéis mesmo, menos de um terço. Já é alguma coisa num partido em profunda crise e historicamente fechado na armadilha de falar apenas para si mesmo.

Sobretudo, falar apenas aquilo que seus militantes estão acostumados a ouvir e sabem ouvir o que pode ser uma interpretação pobre e até deformada da situação e das ocorrências políticas do país.

O problema do PT, porém, é o excesso de partido e a escassez de política. A longa crise do petismo foi configurada com a Carta ao Povo Brasileiro, de 2002, feita basicamente para ganhar a eleição daquele ano a qualquer preço.

Uma proposta de aliança incondicional com o grande capital sem qualquer indicação de quais eram e seriam as ressalvas próprias de um partido de trabalhadores para semelhante entrega. Sem qualquer afirmação explícita de que com a carta o partido abria mão, num eventual governo seu, de uma potencial postura de esquerda e se deslocava para o centro-direita oligárquico e clientelista. Até para práticas de direita, nas formas anômalas de obter fundos para ficar no poder.

Isso está basicamente na alarmante redução da carta a considerações de ordem econômica e de política econômica e de crítica à política econômica do governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso.

Partido de trabalhadores e, portanto, partido da precedência dos temas sociais, o PT nada tinha a dizer quanto aos avanços de política social no governo que contestara durante anos. Tinha apenas objeções. Embora tivesse adotado como seu o Bolsa Família e o programa de combate à escravidão.

Na economia, disse o que não faria, mas não disse o que faria. Menos ainda na política social. Nesse capítulo deixou subentendido que uma mudança na política econômica mudaria o destino dos trabalhadores para melhor, sem dizer melhor em que. A mesma coisa que diz este governo de direita.

No mínimo, além das meras palavras, faltou dizer que o partido, com a carta, abria mão de uma explícita oposição ao capitalismo, sem nunca ter indicado oposição em nome do que, para se compor com o capitalismo, sem tampouco indicar em nome do quê.

A virada do PT só teria sentido em nome de um capitalismo de composição, atenuado, em nome da preservação de uma versão social do próprio capitalismo. A da repartição com os trabalhadores, e não com um partido dos trabalhadores.

Nesse caso, era necessário elaborar e tornar explícita a teoria dessa composição, para indicar que esquerda o partido representava ao se propor como governante e gestor político de uma economia capitalista. Qual pode ser o capitalismo de um partido de esquerda? Qual esquerda pode ser a que se propõe a governar para o capitalismo?

Não é apenas um problema brasileiro. No mundo inteiro, as esquerdas já deixaram de ser esquerdas de superação do capitalismo para ser esquerdas de composição com o capitalismo em troca de concessões no plano dos direitos sociais.

É a consequência da usurpação do trabalho pelo capital, através de tecnologias de minimização dos dispêndios com salários e custos do trabalho.

Com o trabalho economicamente fragilizado, não há como ter uma esquerda politicamente forte. A menos que a esquerda compreenda que uma renovada possibilidade democrática de esquerda depende do surgimento do que a filósofa húngara Agnes Heller (1929-2019) define como necessidades radicais. As que dependem de transformações sociais.

O capitalismo transformou a sociedade em sociedade de consumo. Deslocou a relevância social do ato de trabalhar para a irrelevância do ato de comprar e consumir, em que o consumidor pode ser manipulado. Além do que as necessidades radicais já não são principalmente as relativas à materialidade da sobrevivência.

A política está cada vez mais longe dos interesses próprios das diferenças de classe social. Ricos e pobres são hoje personagens da sociedade de consumo em primeiro lugar, a sociedade em que todos se parecem, mesmo no artifício das roupas baratas que imitam roupas caras. As classes sociais subsistem ocultas, sendo o que expressam, e não o que são.

O próprio PT jactou-se de ter transformado muitos brasileiros pobres em brasileiros de classe média. O que se deu menos pela melhora em suas condições de vida e mais por ter criado as condições políticas para difusão de uma mentalidade de classe média mais abrangente do que a da mera identidade laboral e proletária.

Em sua fala, o senador do PT não diz que seu partido quer ouvir mais e ouvir melhor outros partidos, os democráticos, para libertar-se da estreiteza corporativa que pode ter-lhe fechado as portas da história.

*José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de "A Sociabilidade do Homem Simples" (Contexto).

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