- Valor Econômico (28/11/2019)
Se a ebulição do continente invadir o país, o presidente só terá duas alternativas, reprimir ou tirar Guedes
Se as labaredas do continente avançarem sobre o Brasil, o presidente da República terá duas alternativas: recorrer à repressão ou tirar Paulo Guedes do cargo. Ao enviar o projeto de excludente de ilicitude dos militares para o Congresso, Jair Bolsonaro mostra as fichas que depositou na primeira opção. Não dá, porém, para ignorar os sinais emitidos por um comandante do Exército que exalta a recusa da arma ao papel de capitão-do-mato. Daí porque o ministro da Economia, em barricada contra a segunda alternativa, mencionou a volta do AI-5 como desfecho de um país tomado por manifestações.
Desconhecer a insegurança de Guedes no cargo é incorrer no mesmo erro cometido por porta-vozes bem postos do mercado quando a dupla Alberto Fernández/Cristina Kirchner começou a fazer sombra sobre Mauricio Macri. A interpretação corrente foi a de que a Argentina afundara por não ter feito a lição de casa. Quando o Chile explodiu, porém, os bedéis do liberalismo emudeceram. Se o primeiro da classe entrou em combustão, a lição é outra.
Não é de hoje que o ministro custa a aceitar o custo da democracia. Ainda na campanha presidencial, Paulo Guedes revelou ao Valor sua ambição de implantar a fidelidade programática no Congresso. Quando se deu conta de que não poderia fazê-lo por decreto, passou a acalentar a ideia de transformar Sergio Moro num instrumento de persuasão parlamentar. O Congresso enquadraria o ministro da Justiça e logo frustraria Guedes.
A dificuldade do ministro em circular suas ideias entre os distintos grupos de economistas que serviram aos governos da redemocratização limitou sua experiência de gestão pública ao Chile de Pinochet. Ao longo do governo Bolsonaro, comprovaria sua intolerância ao contraditório. Chegou a bater boca com parlamentares ignorando que se são os vencedores da eleição que impõem a pauta é o Congresso que a aprova. Reiteradas vezes, ao ser confrontado, o ministro ameaçou largar o posto Ipiranga com o bordão “aí vocês vão ver como é que fica”.
Desta vez, a reação foi extremada porque não se limitou ao debate de ideias mas ao desmonoramento do país em que estão ancoradas suas mais firmes convicções. E não apenas as dele. Ex-secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (1994), Rubens Ricupero tem colhido, nos fóruns liberais que frequenta, a percepção de que não é oportuno cavucar as inquietações que movem o continente para não degringolar as reformas em curso no Brasil.
Parassem para ouvir o embaixador concluiriam que tentam conter enchente com algodão nas frestas das portas. Ricupero percorre as sublevações mundo afora, dos coletes amarelos, mobilização que já completou um ano na França, até o Chile, onde a distância entre pobres e ricos só não é maior que a do Brasil, para dizer que a frustração é com a incapacidade de o capitalismo oferecer respostas ao desemprego, à desigualdade e à degradação ambiental.
Só a recusa em conhecer as razões da insatisfação, diz, pode atribuir à interferência de Cuba e Venezuela, países que mal são capazes de se manterem em pé, a deflagração das crises sul-americanas. Onde tudo isso vai dar? O embaixador volta ao século XIX para dizer que as insatisfações acumuladas por sucessivas revoluções - só na França houve três - desaguaram na Primeira Guerra Mundial. Depois de dar como alta a probabilidade de explosão social no Brasil, justifica tamanho pessimismo com uma afirmação categórica: “A história é feita de tragédias”.
Com os juros em queda, a retomada do crédito e os empregos em lenta evolução parece precipitado incluir o Brasil na rota do caos. E Ricupero, de fato, aposta num Natal melhor que o de anos anteriores. Com a virada de 2020 e o FGTS já consumido, porém, virão as obrigações costumeiras de início do ano - IPVA, IPTU e reajuste das escolas e dos planos de saúde. É a classe média, nunca é demais lembrar, quem lidera protestos e consome a água mineral vendida no isopor dos mais pobres.
Um crescimento de 2% não será suficiente para prover emprego para 12 milhões. Aqueles que conseguirem voltar ao mercado de trabalho logo descobrirão que o terão feito em condições depauperadas pelas reformas bolsonaristas. Some-se a isso o cenário externo negativo com uma balança comercial que só não está pior porque o baixo crescimento inibe as importações. Ricupero enumera a saída de U$ 40 bilhões este ano, a frustração do leilão do pré-sal, o estrangulamento cambial e o déficit em transações correntes e arremata: “O fundo do quadro não é bom”.
O presidente da República dará início ao segundo ano de seu mandato com dificuldades em reverter este cenário. As reformas em que aposta ficaram todas mais difíceis que a da Previdência - pelo teor e pela deterioração de sua base política. É a frustração de expectativas e não o desalento, diz um investidor com pés no chão e bom trânsito nas rodas do poder, que ameaça incendiar as insatisfações.
Ao arrebanhar superpoderes, de Paulo Guedes também caiu numa armadilha. O ministro não é cobrado apenas pela política econômica mas pelo tamanho da máquina pública, a regulação do mercado de trabalho, as privatizações e a tabela do Imposto de Renda. Com difíceis eleições municipais pela frente, o presidente não correrá o risco de iniciar a segunda metade de seu governo sem uma reação mais robusta não apenas da economia, mas da vida do país.
Bolsonaro dá sinais de que aprendeu mais rapidamente do que seu ministro da Economia e seus áulicos com a reação tardia do presidente da Argentina, abre-alas da ebulição, à deterioração das condições de vida da população. Por isso, não parece precipitado imaginar que tenha estabelecido dezembro de 2021 como a data-base do mandato de Paulo Guedes.
É tempo suficiente para o ministro da Economia tentar entender o que se passa à sua volta. Antes atribuir o papel de agitador de multidões ao ex-presidente, teria valido mandar um olheiro à Casa de Portugal, sede do último Congresso petista em São Paulo. Um relato fiel lhe daria conta de que nem a presença de Luiz Inácio Lula da Silva foi suficiente para encher o auditório, dirá para incendiar o país.
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