quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Zeina Latif* - Navegar é preciso

- O Estado de S.Paulo

Nada como a falta de dinheiro para forçar o Brasil a rever as políticas públicas

Nada como a falta de dinheiro para forçar o Brasil a rever as políticas públicas. Atribuindo ou não o rótulo de agenda liberal, o fato é que o debate econômico avança. Velhos temas que preocupam há anos ou décadas, inclusive com tentativas fracassadas de avanço, emergem no debate público, com a liderança de Paulo Guedes.

Foram enviadas ao Congresso propostas de emenda à Constituição (PEC) que visam a melhorar a gestão das contas públicas no longo prazo e produzir alguma economia de recursos no curto prazo. São muitos temas polêmicos divididos em três PECs. Essa estratégia parece arriscada, pois poderá produzir um congestionamento de pautas no Congresso e ataques prematuros, sendo que cada PEC terá de seguir seu rito. Não se sabe a ordem de prioridades do governo, mas provavelmente as medidas emergenciais de curto prazo serão priorizadas.

São várias frentes de discussão, e algumas se destacam.

Pretende-se dividir com Estados e municípios a receita de exploração do pré-sal (na casa de R$ 400 bilhões em 15 anos), mas com mudanças na relação do Tesouro com esses entes, com medidas como: proibir empréstimos do Tesouro e limitar as garantias a empréstimos de terceiros a partir de 2026; encerrar a (longa) disputa judicial sobre a Lei Kandir, que representa expressivo risco fiscal ao Tesouro; eliminar a linha de crédito para pagamento de precatórios; e proibir o uso de fundos de pensão e depósitos judiciais entre partes privadas (expedientes utilizados para Estados fecharem as contas).

Não são muitas as contrapartidas tendo em vista o grande volume de recursos transferido. De qualquer forma, será essencial garantir sua aprovação, e não apenas a transferência de recursos, como o ocorrido na renegociação da dívida dos Estados em 2016. Conceder recursos sem a garantia de seu bom uso vai agravar o quadro fiscal. Toda atenção é pouca.

O governo quer tornar obrigatória a avaliação de renúncias tributárias (equivalem a 4% do PIB). Essas políticas, muitas delas equivocadas, cresceram muito até 2015 e têm sido preservadas ou renovadas, sem o devido estudo de efetividade e de justiça social. Muitas têm caráter permanente, como o Simples Nacional (R$ 75 bilhões), isenções no Imposto de Renda (R$ 51 bilhões) e isenções para entidades sem fins lucrativos (R$ 27 bilhões). E a Zona Franca de Manaus (R$ 25 bilhões), prevista na Constituição, foi renovada. Não há como fazer “canetada”. Será necessária a análise caso a caso. Trata-se de uma agenda de longo prazo.

Há o chamado 3D – Desobrigação, Desindexação e Desvinculação –, visando, corretamente, à maior flexibilidade dos orçamentos públicos. São medidas que vão desde a consolidação dos pisos de gastos com saúde e educação dos entes subnacionais (não gera economia de recursos, mas dá maior liberdade para ajustar os gastos às demandas de uma sociedade que envelhece) à diminuição da jornada de trabalho do funcionalismo, com redução proporcional da remuneração. Tema antigo que necessita de ajuste na Constituição, tendo em vista o impasse no STF. É o caso também da autorização de contingenciamento do orçamento do Legislativo, Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública, em caso de risco de não cumprimento de regras fiscais, na mesma proporção feita ao Executivo. Esse dispositivo já vale para a esfera federal, conforme previsto na regra do teto, mas não nos demais entes, o que penaliza a oferta de serviços públicos do Executivo.

Há medidas temporárias de caráter emergencial. Ainda assim, são muito importantes para o cumprimento da regra do teto, que é alicerce da taxa de juros do BC em patamares inéditos. Prevê-se o acionamento de medidas corretivas, visando, principalmente, a conter o crescimento dos gastos com pessoal. Essas medidas, que prometem economia de R$ 24,8 bilhões no próximo ano, têm maior chance de prosperar.

O Brasil precisa avançar no ajuste fiscal e melhorar a alocação de recursos públicos. Haverá resistência dos grupos impactados. Vamos ao debate democrático.

*Economista-Chefe da XP Investimentos

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