- Folha de S. Paulo
Virou moda chamar de liberais coisas sobre a racionalidade do setor público
Alguém acha razoável a proliferação de municípios ocorrida após a Constituição de 1988? Aumentamos em 35% o número de prefeituras, sendo 53% em cidades com menos de 5.000 habitantes. Em regra, sem a mínima sustentabilidade fiscal. A arrecadação própria, que poderia ir para o investimento, mal paga a máquina política local. Faz sentido isso? Revisar essas coisas é fruto da cabeça de algum monstrinho liberal?
Alguém acha razoável que os estados ponham a mão nos depósitos judiciais, fruto de ações entre particulares, para tapar suas contas no vermelho? Ou acha ruim que incentivos fiscais sejam revisados, de tempos em tempos, e que se estipule um teto para as desonerações, no plano da União?
O que há de especialmente liberal nisso? Virou moda, no Brasil, chamar de liberais (por vezes com o “ultra” na frente) coisas que simplesmente dizem respeito ao rigor fiscal e à racionalidade do setor público. Não deixa de ser um elogio ao liberalismo, mas no fundo é um truque: joga para a conversa ideológica temas que são, de fato, uma defesa do setor público e de sua capacidade de funcionar.
Acho curioso quem enche a boca para defender nosso atual modelo de Estado. Modelo que nos levou a um investimento pífio, dívida batendo a 80% do PIB, déficit crônico, 94% do Orçamento engessado e oferecendo, para 85% de nossos estudantes, um dos piores sistemas de educação do mundo, segundo o Pisa, da OCDE. Alguns usam a imaginação, dissociando o modelo de suas consequências. Tento escapar disso.
A agenda de reformas proposta pelo governo não tem nada de especialmente liberal. Seu foco é a viabilização do Estado, e a partir daí coisas óbvias: capacidade de investir, pagar em dia, oferecer segurança jurídica, criar ambiente para o investimento privado. Nada que um bom governo social-democrata não poderia, ou deveria, fazer.
Paulo Guedes comete uma injustiça quando apresenta sua agenda. Houve DNA reformista (liberal ou social-democrata, não importa), no passado brasileiro recente. A atual agenda segue em linhas gerais a pauta de reformas que o país empreendeu nos anos 1990, do real, privatizações, emenda 19 à Constituição, até a Lei de Responsabilidade Fiscal.
O mesmo valendo para o ciclo reformista que se abriu em 2016, com a Lei das Estatais e a PEC do Teto de Gastos. Reformas que nos permitem ter juro baixo e perspectiva real de crescimento, ainda insuficientes para recuperar o estrago produzido na crise de 2015/2016. É disso que trata a atual agenda. A dúvida é se temos liderança para fazer isso acontecer, se o Congresso mantém seu ímpeto reformista, se o ano eleitoral não irá servir como freio.
É previsível que o Congresso faça os ajustes devidos na agenda de Guedes. Igualzinho ao que ocorreu na reforma da Previdência. O governo sai na frente, propõe uma pauta reconhecidamente mais ousada, e o Congresso faz a sua parte. Na prática, aproxima o resultado final de um ponto mediano no sistema político, produto da correlação de forças no Congresso, para o bem ou para o mal.
É assim a democracia, não é mesmo? É assim que funcionaram as coisas no Brasil, seja em pautas do coração do bolsonarismo, como a flexibilização do porte de armas, seja na pauta econômica, como a Lei da Liberdade Econômica. Isso só mostra o óbvio, que irrita tanta gente: que a democracia modera a tomada de decisões, aproxima posições, no mundo real da política, apesar do irresistível gosto de alguns pela histeria.
A pergunta óbvia a fazer diz respeito à viabilidade política das reformas. Muito se criticou a recusa ou incapacidade do governo de criar uma maioria estável no Congresso, mas esse arranjo é hoje nossa melhor aposta. Esse equilíbrio instável que por vezes chamei aqui de modelo de corresponsabilidade. Da reforma que a um certo momento perde o carimbo do governo e passa à órbita de responsabilidade do Congresso.
Escutei de gente boa que a aprovação dessas medidas significaria dar não sei quantos “créditos ao governo”. Pensamento velho e pequeno, compartilhado por quem prefere que o país exploda, desde que isso renda uma boa “lacrada” na internet. O que está em jogo não é o governo, mas o país.
O governo daria uma bela ajuda se reduzisse o volume de trapalhadas e conflitos inúteis, visto que a oposição por certo não o fará. De qualquer modo, nosso sistema político já deu mostras de que consegue avançar em meio à gritaria e à instabilidade que se tornaram o feijão com arroz de nossas democracias na era digital.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
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