quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Maria Cristina Fernandes - Contra a polarização, surge um roteiro torto

- Valor Econômico

Para a maior aposta da terceira via, a corrupção é um defeito de fábrica do brasileiro

A soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva reacendeu, no maior partido de oposição, a expectativa de que seria capaz de dar sobrevida à polarização. Para consumo público, o #LulaLivre foi trocado pelo #VoltaLula. Entre quatro paredes, os petistas reconhecem que as condenações e processos judiciais que o ex-presidente enfrenta dificilmente lhe deixarão ser candidato em 2020, mas exibem a certeza de que Lula será capaz de pautar a agenda da oposição e ungir o nome petista para a sucessão. A maratona jurídica que o ex-presidente tem pela frente, porém, é apenas um dos fatores que concorrem para tirar o fôlego da polarização.

A existência de um segundo turno favoreceu a que as oito eleições presidenciais desde a redemocratização tenham levado a disputas finais entre PT e anti-PT. Na primeira delas, em 1989, o conjunto de alternativas, liderado por Leonel Brizola (PDT), somou metade dos votos válidos no primeiro turno. No outro extremo, em 2006, a reeleição de Lula levou ao ápice da polarização. As demais candidaturas amealharam menos de 10% dos votos válidos.

De lá para cá, a aposta numa terceira via só cresceu. E, em 2018, atingiu um quarto dos votos válidos. Uma parte vem do antipetismo recalcitrante. Outra, do próprio PT. Se a centralidade de Lula parece incontornável, o discurso não o é. Hoje a estratégia do partido parece focada na associação do presidente Jair Bolsonaro, ora às milícias, ora às ameaças à democracia. Não é preciso acreditar que Fabrício Queiroz, ex-assessor do presidente, seja um vendedor de carros usados de sucesso, ou que os Bolsonaro tenham a Constituição como descanso de tela para constatar que a estratégia tem fôlego curto.

A aposta, que passa pelo apoio maciço ao candidato do Psol à Prefeitura do Rio, Marcelo Freixo, também ressuscita a crença de que a dupla polícia/procurador é capaz de substituir a política. A estratégia remonta ao idílio petista no desmonte do governo Fernando Collor. De lá para cá, no entanto, a judicialização da política coleciona mais derrotas que vitórias para o PT. Pela velocidade com a qual a Polícia Federal e o Ministério Público processam as denúncias contra os governadores do Nordeste, reduto oposicionista, é possível que Bolsonaro colha êxitos com mais brevidade do que a esquerda, a partir da região que é seu maior alvo eleitoral.

Nem Freixo, cuja carreira política se confunde com o combate às milícias, aposta todas as fichas nesta raia. Integrante do grupo de trabalho que analisou o pacote anticrime, enfrentou a claque das redes sociais ao cumprir o papel de parlamentar de oposição votando a favor de um projeto de que discordava, mas no qual atuou para melhorar. Emplacou o juiz de garantias, que, contra a vontade do ministro Sergio Moro, escapou do veto presidencial.

Na bolha virtual, parece mais fácil ganhar audiência com o discurso de que a democracia está em chamas e a política, tomada pelas milícias. O ex-presidente Lula estancou o ideário golpista ao dizer que o mandato de Bolsonaro havia sido conferido pelo eleitor. Ainda prospera no partido, no entanto, a ideia de que o presidente tem um exército do qual pode lançar mão para não entregar o poder ao fim do seu mandato.

Somados os contingentes das Forças Armadas, policiais militares, policiais civis, guardas metropolitanos, seguranças e milicianos, o presidente parece, de fato, contar com milhões de simpatizantes armados. Outra coisa é mobilizá-los. Não há atalho para a defesa da democracia que não passe pela disputa de rumos das políticas de governo que estão no Congresso - e fora dele - e afetam diretamente a vida da população.

É bem verdade que o desapego pelos parlamentos mundo afora desorienta a bússola da oposição. Num dos berços da democracia, o primeiro-ministro que pôs o parlamento em recesso ganhou aval popular. Na maior de suas colônias, o impeachment do presidente populista votado pelos representantes do povo ainda não faz cócegas em sua intenção de voto.

Na vizinhança, há sinais eloquentes de impaciência com o empobrecimento e a desigualdade mesmo naqueles países de desempenho econômico melhor que o brasileiro. A reação às manifestações - eleitorais e de rua - ainda não foram acompanhadas por rumos claros de um desenvolvimento que não esteja a reboque. A inquietação nacional pode vir junto com o crescimento mitigado e o trabalho precarizado. Mas aí não é de legado que se estará em busca, mas de amanhã.

Entre os movimentos que reivindicam a antena para o futuro, aquele que se reúne em torno de Luciano Huck tem o mérito de ter se dado conta de que a desigualdade é um tema que hoje divide mais o país do que a polarização entre Bolsonaro e Lula. O discurso, no entanto, ainda é muito mais incipiente do que a massa cinzenta do seu entorno.

No início de outubro, o apresentador fez uma palestra no Porto Digital, uma parceria público-privada do Recife que chamou de “Vale do Silício brasileiro”. Numa apresentação permeada de imagens e histórias dos personagens de seu programa de TV, Huck disse ter nascido duas vezes. Uma em setembro de 1971 e outra, em maio de 2015, quando sobreviveu a um acidente aéreo. A política chegou em sua vida como uma revelação. Angélica descobriu que a ioga e a meditação são mais poderosos que o Rivotril e, para ele, “vieram muitas reflexões” sobre as razões pelas quais havia recebido “mais esta chance de Deus”.

Decidiu convocar sua geração para “por a mão na massa”. Descobriu que a Coreia do Sul “zerou seus abismos sociais” dias antes da estreia no Brasil de “Parasita”, o filme de Joon-ho Bong que mostrou a sobrevivência da velha luta de classes naquele país. Com sua experiência na televisão, Huck descobriu que o país precisa de um roteiro para parar de dividir e ter um projeto único. O Estado, diz, é paquidérmico, e não acompanha as mudanças do empreendedorismo: “O cara tem que ser ninja para ser CEO hoje”.

O país assistiu a um desfile de ninjas corruptos nos últimos anos, mas, na visão da maior aposta da terceira via hoje, o maior problema parece ser o brasileiro: “O Brasil nasceu com um problema de fábrica. A gente nasceu corrupto. É um defeito de fabricação. Temos de corrigir”. A primeira providência é ferver este esboço de roteiro num caldeirão e começar tudo de novo.

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