- O Globo
Luta do ‘good doctor’ é igual à de milhões de pessoas
Quem já viu episódios da série “The good doctor”, em cartaz na TV Globo e no Globoplay, sabe que a famosa frase “de onde menos se espera, daí é que não sai nada mesmo” é mais falsa do que nota de três reais. O autor da frase, Apparício Torelly, o conhecido Barão de Itararé, não conheceu o médico residente Shaun Murphy, personagem que dá título ao seriado. Shaun é autista, não é capaz de responder a qualquer pergunta feita diretamente a ele, mas consegue manter alguns diálogos. Todos muito difíceis e tortuosos. À primeira vista, não se pode mesmo esperar nada dele.
Ocorre que, conforme a severidade do transtorno, autistas conseguem desenvolver diversas habilidades. A condição comportamental e neurológica do portador do transtorno é caracterizada pela dificuldade em interagir socialmente, sobretudo em razão da sua reduzida capacidade de comunicação verbal. Ele desenvolve também manias restritivas e repetitivas, que muitas vezes geram obsessão. Obviamente, os portadores desse transtorno não são pessoas fáceis de lidar, mas nem por isso são incapazes. Em alguns casos, podem até ser melhores no exercício de uma atividade por ter foco absoluto nela.
Parece ser esse o caso do doutor Shaun. Mas, à exceção de seu antigo médico, ninguém o respeita no hospital em que ele faz residência como cirurgião. Em cada episódio ele tem que provar sua capacidade. E a prova com sobras, mostrando ser dono de uma mente atenta, de uma memória poderosa e detentor de conhecimentos científicos que muitas vezes ultrapassam os dos seus colegas e chefes. O personagem consegue salvar vidas e aos poucos consolidar sua posição no hospital, contra todas as expectativas.
Doutor Shaun é personagem de uma história de ficção, mas sua luta é igual à de milhões de pessoas que buscam apoio para serem incluídas no Brasil. No mundo, segundo estudo da Unesco de 2017, mais de um bilhão de pessoas possuem alguma forma de deficiência. No Brasil, são 45,6 milhões. Neste contingente estão incluídas pessoas com deficiências físicas, cognitivas e neurológicas. A deficiência do “good doctor” é da terceira categoria. Mas os portadores de todas elas são subestimados social e profissionalmente.
A pirralha Greta Thunberg tem síndrome de Asperger, um transtorno obsessivo-compulsivo gerador de um mutismo seletivo similar ao autismo. Mesmo assim, a ambientalista sueca produziu uma revolução na defesa do meio ambiente, foi eleita Personalidade do Ano da “Time” e — junto com o brasileiro Ricardo Galvão, demitido do Inpe pelo presidente Bolsonaro, que discordou de dados de queimadas do órgão — nomeada pela revista “Nature” uma das dez pessoas que mais se destacaram este ano.
“Ser diferente é um superpoder”, disse Greta quando perguntada sobre sua doença. É mais ou menos isso o que vive Shaun Murphy no seriado da TV. Claro que nem todos os deficientes são especialmente geniais como Greta ou Shaun. Na maioria dos casos não são. Precisam de atenção e cuidado especial para não ficarem à margem da sociedade produtiva ou limitadas nas suas interações sociais. Para isso, a participação das pessoas próximas é fundamental. Como também são imprescindíveis regras e leis de inclusão.
No fim de novembro, o Ministério da Economia mandou para o Congresso um projeto de lei, com pedido de urgência, que modifica para pior a atual legislação de inclusão no país. O documento, que mereceu pouca ou quase nenhuma publicidade do governo, foi frontalmente atacado por diversas instituições que defendem ou aglutinam pessoas com deficiência. O ponto mais esdrúxulo do projeto desobriga empresas de atender à cota de contratação de pessoas com necessidades especiais em troca do pagamento de uma taxa à União. Quase todas as 440 mil pessoas com deficiência que trabalham no Brasil entraram pela Lei de Cotas.
O Ministério da Economia ignorou parecer da Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. O que mostra que projeto tem obviamente um caráter inteiramente econômico. E, nesse caso, para que ouvir um órgão especializado dirigido por uma mulher? Uma mulher surda.
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