sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Vinicius Torres Freire - Empresas ainda têm medo na 'nova era'

- Folha de S. Paulo

Euforia da finança não contagia executivos de comércio, indústria e serviços

A Bolsa de São Paulo está animadíssima. Vai às alturas mesmo sem os “estrangeiros” (não residentes), que tiraram dinheiro daqui desde a eleição de 2018, na prática.

Não é bem o caso do comércio e dos serviços, indica a pesquisa de confiança dos empresários de dezembro, da FGV. Recuperam-se do desânimo profundo de maio, mas ainda estão menos confiantes do que no início do ano, no surto que durou da eleição até fevereiro. A Bovespa, por sua vez, subiu mais de 20% desde então.

“À nossa frente, o horizonte está limpo e aberto. Os preparos necessários já foram feitos e, agora, estamos na cabeceira da pista, prontos para decolar. Esse é o Brasil de 2020”, diz a apresentação de um cenário da XP Investimentos.

“É o início de uma nova Era [sic]: confiantes com o futuro, de cintos afivelados e, finalmente, prontos para decolar”, diz o texto da empresa financeira. Na “nova Era”, a economia cresce 2,3% em 2020, mais ou menos o que chuta a mediana dos economistas de “o mercado”. Não parece lá uma aurora dourada, mas passemos.


Qual a base da animação da XP, além de ter aberto o capital e levantado bilhões de dinheiros? Inflação e juros baixos de modo duradouro, “...crescimento acelerando e o desemprego gradualmente diminuindo”, com base no “aperto das contas do governo e a heroica aprovação da reforma da Previdência, que deu início a um novo ciclo econômico”.

Assim como as demais empresas, a XP parece estar muito satisfeita com a reforma trabalhista, agora na segunda fase, versão Bolsonaro-Guedes. Talvez venha ainda uma terceira, que na prática daria cabo da CLT.

Por ora, o pessoal da XP conta mais com os ovos que estão na cesta, que parecem brilhantes: “...a reforma da Previdência ajudará a estabilizar a dívida pública na próxima década, eliminando, quase por completo, o risco de solvência fiscal. O Brasil não está mais quebrado e isso é transformacional”. É o que diz o texto principal do relatório, que termina com dicas de investimento para atuais e potenciais clientes.

O que pode dar errado? O andamento lerdo e incerto da reforma tributária, da reforma da Previdência de estados e municípios e das emendas de corte na despesa federal, em particular com servidores.

Quando enunciam os riscos econômicos, economistas da XP parecem listar as preocupações de empresários de comércio, serviços e, mais ainda, indústria. O desemprego cai lentamente (no ritmo atual, “a taxa de desemprego retornaria para sua média histórica de 9,35% apenas em abril de 2025”).

A indústria vai mal; no último ano, encolheu, na verdade. “Dessa forma, se esse cenário não se inverter em alguma medida em 2020, a estagnação desse setor poder vir a tirar dinamismo de outros setores”, diz o pessoal da XP.

Por que tratar desse relatório da XP para leigos? Porque se trata de negócio muito bem-sucedido, relativamente novo e motivo de inveja de 110% do mercado financeiro. Porque, como se queria demonstrar, o ânimo da turma contrasta brutalmente com o das empresas de comércio e serviços, mesmo com a melhora recente de humores.

Sim, “o mercado” antecipa tendências, diz o clichê (menos quando quebra o planeta, por exemplo, como em 2008, mas passemos). Sim, as condições para algum crescimento no curto prazo não eram tão boas desde o início da recessão, em 2014. Sim, nas duas últimas décadas, as previsões de “o mercado” para o PIB estiveram completamente erradas.

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