Bolsonaro ensaia romper com Moro – Editorial | O Globo
Um embate como este, em torno de uma eleição daqui a mais de dois anos, não é positivo para o governo
O presidente Jair Bolsonaro e seu ministro Sergio Moro parecem ter feito apostas erradas, quando um acabara de ser eleito e outro ainda era o juiz da Lava-Jato.
Bolsonaro, ao convidar o juiz a ser o responsável pelo atraente combo da pasta da Justiça fortalecida pelo Ministério da Segurança, e Moro, ao aceitar.
O presidente ainda não empossado imaginou que usufruiria da popularidade de Moro, sem pagar qualquer preço. E Moro, que teria em Bolsonaro um apoio firme no enfrentamento da corrupção, numa sequência animadora do seu trabalho como juiz na Lava-Jato.
Poderia no Executivo avançar junto com parte do Congresso em reformas para desbloquear o acidentado caminho que levará o país a de fato acabar com a impunidade de criminosos do colarinho branco, no mundo empresarial e no universo político.
O caso do filho de Bolsonaro, senador Flávio, e do amigo dele e da família, Fabrício Queiroz, na administração de uma banca de “rachadinha” montada no gabinete de Flávio ainda no seu mandato de deputado fluminense, mostrou que a bandeira anticorrupção do pai era apenas um gesto eleitoreiro. Já presidente, ficou visível como Bolsonaro procurou ajudar o filho e o amigo.
Moro criticou o presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, quando ele concedeu liminar pedida pelo advogado de Flávio para suspender a investigação em andamento sobre o já senador Bolsonaro feita a partir de relatórios emitidos pelo Coaf, rebatizado de Unidade de Inteligência Financeira (UIF). Foi além e estendeu a decisão a todos os inquéritos semelhantes. Sob críticas da opinião pública e de observações de entidades multilaterais de que o país se arriscava a acobertar lavagem de dinheiro, o exagero foi consertado pelo plenário da Corte.
O presidente não gostou da reação do ministro, tampouco quando ele também reclamou da decisão do chefe de, ao sancionar o pacote anticrime, não vetar, como pedira, a emenda teleguiada feita na Câmara para criar o juiz de garantias, uma figura que pode ser positiva, mas que agora está a serviço do plano para esvaziar a primeira instância da Justiça, de onde o ministro vem. O presidente certamente não contava com um Moro reticente, embora o ministro tenha feito gestos de aquiescência (no excludente de ilicitude, nas armas), e provavelmente não esperava a persistente popularidade do ex-juiz. Acima da dele.
A fritura de Moro chegou a altas temperaturas com a admissão de Bolsonaro, confirmada na quinta, de que há “estudos” para separar a Segurança da Justiça. Significará o esvaziamento completo do ministro, que ficará sem a Polícia Federal, por exemplo. Foi demais, e Moro comentou com interlocutores que deixará o cargo se isso acontecer.
Bolsonaro viajou para a Índia ainda na quinta-feira e, ao desembarcar ontem, disse ser “zero” a chance, “no momento”, de fazer a separação das duas pastas. “Não sei amanhã, tudo muda”. O embate continua. A má repercussão em hostes bolsonaristas apoiadoras da Lava-Jato teria levado ao recuo.
Moro espera uma incerta indicação ao Supremo ou rompe e se lança já para 2022? São duas das cartas em cima da mesa. Já numa perspectiva mais ampla, não é bom que o primeiro escalão do governo sirva de espaço de enfrentamento político com vistas a uma eleição para daqui a mais de dois anos.
Reformar por dentro – Editorial | Folha de S. Paulo
Mudanças no funcionalismo deveriam incluir demissão por mau desempenho
É irrisório o número de servidores federais nas três esferas de poder (Executivo, Legislativo e Judiciário) com rendimentos abaixo de R$ 2.500 ao mês. O valor é superior aos cerca de R$ 2.300 que são pagos, em média, a todas as pessoas com alguma atividade remunerada no país, formal ou informal.
No setor público federal, a regra são salários acima de R$ 7.500 ao mês para servidores de nível médio no Executivo e maiores que R$ 10 mil para os de nível superior.
Nos outros poderes, os valores são ainda mais elevados, chegando a casos extremos, como o do Legislativo, em que dois terços dos servidores de nível superior ganham R$ 30 mil ou mais por mês.
No governo federal, que concentra a maior parte do funcionalismo, 7.766 servidores públicos estatutários foram expulsos desde 2003 —o que representou 0,5% do quadro atual na área civil.
Nenhum deles foi obrigado a sair do trabalho por insuficiência de desempenho na função, uma hipótese prevista na Constituição há mais de 20 anos, mas que nunca chegou a ser regulamentada.
Quase dois terços das expulsões (65%) referem-se a casos de corrupção e outras 25% estão relacionadas a abandono, inassiduidade ou acumulação ilegal de cargos, segundo dados consolidados da Controladoria-Geral da União.
Desde que foi promulgada a reforma da Previdência, em novembro passado, o governo federal vinha prometendo apresentar ao Congresso uma proposta robusta de reformulação da área administrativa e de controle de pessoal.
Agora, os sinais do Ministério da Economia são de que pontos polêmicos dessa reforma podem ficar para um segundo momento —em particular a possibilidade de demissão de servidores por insuficiência de desempenho e a criação de regras para reduzir a remuneração do funcionalismo em episódios de perda de arrecadação.
Mostrando-se suscetível a pressões corporativistas, o governo alega que, diferentemente da reforma da Previdência, é possível fazer algumas mudanças na área do funcionalismo mais à frente, sem a necessidade de alterar a Constituição.
Na reforma da Previdência, em nome de um bem comum, toda a sociedade teve de se conformar com perdas. Por isso, não se pode perder de vista a necessidade também de mudanças na área do funcionalismo, que afeta um número infinitamente menor de pessoas.
Segundo pesquisa Datafolha, 88% dos brasileiros apoiam a demissão de servidores que não desempenharem bem as suas funções. Levando-se em conta que muitos dos entrevistados para o levantamento estão entre os clientes de serviços públicos, a opinião deles deveria ser considerada nesse caso.
Cartório industrial – Editorial | Folha de S. Paulo
Fiesp declara apoio a Bolsonaro enquanto aprofunda oligarquização
A tendência de organizações nascidas para vocalizar interesses coletivos de se converterem com o tempo em fortalezas inexpugnáveis à renovação, dedicadas a proteger seu grupo restrito de dirigentes, é um fato fartamente descrito na literatura econômica e sociológica.
No caso de associações agraciadas com monopólios de representação e financiadas à base de contribuições obrigatórias, os efeitos da chamada lei de ferro das oligarquias tendem a ser mais rápidos e profundos. No Brasil, esse modelo não dá mostras de retroceder.
Veja-se a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, cujo presidente, Paulo Skaf, já foi eleito quatro vezes seguidas e poderá ter permanecido no cargo 16 anos, caso não reincida na mudança dos estatutos para alongar a estadia.
Por duas vezes, nesse período, já pôde desvincular-se do posto, disputar eleições majoritárias e voltar a ele depois da derrota. As fronteiras entre, de um lado, a aventura política pessoal e, do outro, o comando de Fiesp e Ciesp —bem como dos braços paulistas de Sesi e Senai— ficaram borradas.
Contra o statu quo se insurgiram, nesta Folha, três lideranças do segmento: Horácio Lafer Piva, Pedro Passos e Pedro Wongtschowski. O título do artigo, “Morte anunciada”, alude ao risco de que a rarefação da atividade fabril seja ainda mais acentuada em meio à deterioração da representação do setor.
Dias depois coube a Skaf a resposta, que veio sob a forma de um libelo de adesão explícita ao governo do presidente Jair Bolsonaro.
Não que o governismo soe estranho à trajetória da entidade nem que seja ilegítimo numa organização privada. A Fiesp esteve à vontade com as administrações petistas enquanto o Tesouro se endividava para que o BNDES emprestasse somas astronômicas a grandes empresas com juros subsidiados.
O que resta como nota duvidosa são as motivações da recente aproximação com o bolsonarismo. Seriam circunscritas às razões apresentadas, de alinhamento com a política econômica do governo federal, ou estariam sobretudo relacionadas às nunca saciadas pretensões eleitorais de Paulo Skaf?
A confusão fica difícil de ser desfeita quando a Fiesp já vai longe na trilha para consolidar-se como um grande cartório. O ministro Paulo Guedes, que na campanha prometia combater o padrão oligárquico da representação sindical no Brasil, parece ter-se acomodado à sombra do prédio na avenida Paulista.
Exemplo para o Brasil – Editorial | O Estado de S. Paulo
A cidade de São Paulo completa hoje 466 anos de fundação profundamente marcada pelos efeitos de seu gigantismo. No planalto seguro, de terra fértil e águas abundantes, que fora encontrado pelos jesuítas que subiram a Serra do Mar à procura do lugar ideal para estabelecer o colégio que serviria de núcleo do processo de evangelização dos índios na metade do século 16, cresceu a 10.ª cidade mais populosa do planeta, com 12,2 milhões de habitantes, milhares deles oriundos de mais de 150 países.
É em São Paulo que estão as maiores comunidades de italianos, japoneses e portugueses fora de seus países. A cidade é o que é hoje, em boa medida, pela contribuição riquíssima dada por esses imigrantes. A convivência pacífica e contributiva estabelecida entre paulistanos de nascença e de afeto transmite ao mundo um luminoso sinal de união e acolhimento no momento em que variadas nações têm de lidar com o recrudescimento dos episódios de intolerância e xenofobia.
Fora os estrangeiros, para São Paulo também afluem centenas de milhares de brasileiros vindos de outros Estados em busca de melhor qualidade de vida. Não raro a encontram, a despeito dos problemas que, como toda megalópole, aqui também podem ser observados, como as deficiências no transporte público, a violência urbana, entre outros. Mas ao sopesar os prós e os contras, o saldo ainda é muito positivo para a cidade de São Paulo.
Um contingente desses, maior do que a população de países como Uruguai, Bolívia, Portugal, Bélgica ou Suécia, é atraído pelas oportunidades que não se oferecem a não ser em São Paulo. A cidade é tida como um dos mais importantes centros culturais, mercantis e financeiros da América Latina. Isso se traduz em melhores oportunidades de emprego, melhor remuneração, mais acesso a serviços públicos e a bens culturais. Mas, dada sua pujança, São Paulo retrata como nenhuma outra cidade brasileira os mais perversos contrastes da desigualdade que há séculos nos mantém aferrados ao atraso.
Um relatório elaborado no final do ano passado pela ONG Rede Nossa São Paulo expôs essas fraturas. Um de seus principais achados foi a relação estabelecida entre a desigualdade econômica e a desigualdade racial. Os distritos mais pobres da capital paulista concentram o maior porcentual da população de pretos e pardos. A maior taxa de emprego formal por dez habitantes participantes da População em Idade Ativa (PIA) que consta do Mapa da Desigualdade é a do distrito da Barra Funda (59,24%). Já o porcentual de pretos e pardos moradores do distrito da zona oeste é de apenas 15,71%. Em Jardim Ângela, distrito da zona sul, 60,11% dos moradores são pretos ou pardos e apenas 0,5% deles têm empregos formais (ver editorial Várias cidades em uma só, publicado em 13/11/2019).
Há pouco a ONG Rede Nossa São Paulo divulgou nova pesquisa Viver em São Paulo, que anualmente mede a qualidade de vida e a percepção de bem-estar dos paulistanos. Não houve mudança significativa no grau de satisfação dos paulistanos com a cidade. Em 2019, a nota, que vai de 0 a 10, ficou em 6,5 (em 2018 foi 6,3). É digno de registro, no entanto, o aumento de 5 pontos porcentuais – de 15% em 2018 para 20% no ano passado – do número de paulistanos que atribuíram notas 9 e 10 para a experiência de viver em São Paulo. Destes, 31% pertencem às classes D e E, um indicativo de que políticas públicas voltadas para os segmentos mais carentes da população têm sido bem percebidas por uma parcela significativa deles.
A pesquisa também mostrou que a esmagadora maioria dos paulistanos (79%) continua se orgulhando de sua cidade. Mas o número caiu 6% em relação ao sentimento apurado há dez anos (85%). Capturar as razões que levaram a essa queda e buscar caminhos para reverter essa curva é mais um dos grandes desafios que pairam sobre a mesa dos que se põem a serviço da administração da maior e mais complexa cidade brasileira.
São Paulo é um exemplo para o Brasil. É um farol a indicar nosso melhor destino, e também é o livro do tombo de nossas mais renitentes mazelas.
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