sábado, 28 de março de 2020

Luiz Fernando Janot - Banalidade do mal

- O Globo

Guedes precisa compreender que certos dogmas da Escola de Chicago não se aplicam à realidade atual

Superada a resistência inicial, o mundo passou a cumprir as recomendações da Organização Mundial da Saúde para conter a disseminação do coronavírus. Apesar das fronteiras fechadas, do cancelamento de voos e das restrições para a circulação nos espaços públicos, o vírus continuou se espalhando.

Ao abalar as bases do modelo econômico, essa pandemia mostrou que a economia não pode ser um fim em si mesmo. Para proteger as empresas e assegurar a subsistência dos trabalhadores, o governo dos Estados Unidos destinou dois trilhões de dólares. Um montante superior ao PIB brasileiro.

Apesar de a globalização ter facilitado o acesso de um grande número de pessoas aos bens de consumo, a má distribuição de renda e a desigualdade social se tornaram o grande desafio deste século. Quase a metade da população mundial — 3,4 bilhões de pessoas — não possui recursos para bancar suas necessidades básicas.

No Brasil, são mais de 23 milhões de pessoas abaixo da linha de pobreza. Cerca de 30 milhões não dispõem de água potável e aproximadamente 100 milhões vivem em ambientes desprovidos de esgoto sanitário. Diante desse quadro desolador, o governo brasileiro ainda insiste em reduzir o papel do Estado.

Pergunto se empresas privadas terão interesse em virar concessionárias de infraestrutura nas favelas sem a certeza de retorno do capital aplicado? Graças ao marketing ardiloso, tenta-se convencer a sociedade de que esta seria a única maneira viável de levar saneamento às áreas pobres da cidade. Pura balela.

A dignidade do indivíduo não pode ser relativizada por argumentos desprovidos de fundamentação. Urbanização e moradia digna são direitos inalienáveis de todo cidadão. Sem subvenção dos governos, dificilmente encontraremos habitações de interesse social com melhor qualidade. Isso não passa pela cabeça do ministro da Economia.

Ele está mais interessado em proteger as empresas do que os empregados. Não foi à toa que apresentou uma medida provisória suspendendo os vínculos empregatícios por quatro meses e sem compensação financeira para o trabalhador. Diante da grita geral , foi obrigado a retirar sorrateiramente esse artigo da proposta apresentada.

De uma vez por todas, o ministro Paulo Guedes precisa descer do seu pedestal para compreender que certos dogmas da velha Escola de Chicago não se aplicam à realidade atual. Haja vista as recentes manifestações populares no Chile criticando os resultados desse modelo econômico implantado durante a ditadura militar.

A pandemia que ora se espalha pelo mundo, ao adquirir grandes proporções, se transformou em uma crise humanitária. O foco principal não é a crise econômica, como tentam nos convencer os arautos da insensibilidade. Como esse tal de Roberto Justus, que reduziu o número de mortos a meros percentuais estatísticos. É repugnante ver a vida humana ser tratada com tanta frieza e desfaçatez.

Hoje, estamos diante de mais um dilema colocado irresponsavelmente pelo presidente da República. Ao afirmar que a população brasileira deve voltar a frequentar escolas, locais de trabalho e áreas de lazer, ele coloca o Brasil na contramão do mundo e das recomendações da OMS. Para ele, a pandemia é uma banalidade.

Esse desatino decorre do exemplo dado pelo presidente americano, a quem ele devota uma subserviência vexatória. Contudo, deixou de traçar um paralelo entre o reduzido aporte de recursos que pretende fazer e o montante que o seu colega destinou para os setores hospitalares, laboratórios de pesquisa científica, empresas particulares e cidadãos americanos.

Ao privilegiar a economia em detrimento da saúde, o nosso presidente expõe a população ao risco de contaminação e transmissão do vírus. Economia e saúde precisam caminhar juntas no processo de restabelecimento das atividades da sociedade.

Questões tão complexas não podem ser tratadas por meio de atitudes impulsivas e inconsequentes. Recomendo ao presidente que, antes de lavar as mãos, tente compreender o verdadeiro significado da banalidade do mal.

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