Maior crise sanitária e econômica desde o início do século XX acelerou o debate aumento das desigualdades e falta de serviços de qualidade, como saúde
Cassia Almeida e Henrique Gomes Batista | O Globo
RIO - Em meio às dúvidas provocadas pela maior crise sanitária e econômica atravessada pelo planeta desde o início do século passado, surge uma certeza: a visão dominante até agora sobre o papel do Estado vai mudar substancialmente. Especialistas concordam que, a partir da pandemia de coronavírus, serão cobrados dos governos no mundo soluções para mazelas sociais, políticas de redução da desigualdade de renda, uma ação mais estratégica no suprimento de itens essenciais e o fortalecimento de serviços públicos, como os de saúde, forçando mudanças no gasto público e no sistema tributário. Uma nova realidade que poderá favorecer o nacionalismo e o protecionismo.
— A pandemia pressionará os governos a aumentar a tributação e diminuir a desigualdade. O sofrimento social em todo o mundo está subindo rapidamente. Após a Covid-19, qualquer governo que não ajude grupos de baixa renda arriscará a estabilidade social — afirma Cliff Kupchan, presidente da Eurasia Group, maior consultoria econômica e política do mundo.
A transferência maciça de recursos para trabalhadores informais e mais vulneráveis acelerou o debate sobre a necessidade de renda mínima universal, na visão do sociólogo Pedro Ferreira de Souza, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ganhador do Prêmio Jabuti com livro sobre tendências históricas da desigualdade brasileira:
— O debate avançou 15 anos. Medidas que sequer se poderia imaginar há muito pouco tempo, como a nacionalização de hospitais na Espanha (que já soma 20 mil mortes decorrentes da Covid-19), começam a aparecer. Os sistemas públicos saem fortalecidos. São marcos civilizatórios. Quem levantar essa bandeira vai ter boa receptividade.
Os discursos mudaram. No Reino Unido, após sair do hospital onde se tratou do Covid-19, o primeiro-ministro Boris Johnson, que até pouco tempo subestimava o risco da pandemia, atribuiu sua recuperação à qualidade do sistema público de saúde britânico.
—O mundo está se desglobalizando, e o Estado-nação está em ascensão. Os governos adotarão uma nova e ampla definição de segurança nacional, que incluirá produtos farmacêuticos e equipamentos médicos, alimentos e tecnologia — prevê Kupchan.
Influência nas eleições
Nos Estados Unidos, a questão ganhou relevância ainda maior. O acesso desigual à saúde ficou flagrante.
— O debate sobre a proteção social tende a ser primordial na eleição americana e pode significar um retrocesso nas ideias ultraliberais. A crise deve reacender a percepção da importância de políticas industriais como estratégicas, algo que a Alemanha e a França já estavam debatendo antes da pandemia — diz Cláudia Trevisan, da Universidade Johns Hopkins, de Washington.
Kupchan prevê a ascensão de líderes comprometidos com iniciativas governamentais que estimulem os negócios e ajudem os pobres. A nova postura dos Estados será percebida primeiro na saúde, que pode ser elevada a um novo patamar de acesso e qualidade. Em todos os seus aspectos, como lembra o economista José Alexandre Scheinkman.
— Ficou claro como é inconcebível que, com o tamanho, a renda e a carga tributária do Brasil, ainda haja 50% dos lares fora do sistema de esgoto — diz Scheinkman, professor da Universidade de Princeton, nos EUA. — Quando o sistema de saúde entra em colapso, não adianta ser rico, porque não vai conseguir uma vaga.
Paulo Resende, da Fundação Dom Cabral, acredita que até a produção estatal de insumos médicos poderá voltar ao debate após o fim da pandemia.
A situação crítica da pandemia na região mais desenvolvida da Itália, onde médicos tiveram que escolher pacientes com mais chance de sobrevivência, mostra que nem sempre os mais ricos ficam protegidos. André Soares, pesquisador do Atlantic Council, centro de estudos de Washington, diz que o reforço dos sistemas de saúde já aconteceu em países asiáticos após epidemias de doenças respiratórias nos últimos anos, como Sars e H1N1. Isso explicaria a menor mortalidade naqueles países na atual pandemia. Já estavam mais preparados, inclusive com elevado número de respiradores.
A tragédia sanitária veio junto com o aumento da pobreza e da desigualdade no mundo, o que já estava em curso inclusive nos países desenvolvidos. No Brasil, as filas na porta de agências da Receita para regularização de CPFs, exigência para informais receberem o auxílio de R$ 600 do governo — com pessoas correndo risco de contrair o vírus — dão uma dimensão do fosso social.
Não foi diferente lá fora. Para Shobita Parthasarathy, diretora do Programa de Ciência, Tecnologia e Política Pública da Universidade do Michigan, nos EUA, a desigualdade saltou aos olhos:
— A crise mostrou profundas e dolorosas desigualdades em nossas sociedades, das disparidades de saúde racial nos Estados Unidos às circunstâncias desesperadoras e inseguras dos trabalhadores migrantes em Cingapura e na Índia.
Na China, a desigualdade também cresce, observa Cláudia Trevisan. Esse processo levou o governo comunista a focar a retomada da economia no mercado interno, intensificando medidas de proteção social em vez dos megaprojetos de infraestrutura que marcaram a reação do país à crise financeira global de 2008.
A História revela que, após momentos disruptivos como o que estamos vivendo, foram montadas políticas para melhorar as condições de vida da população, com maior propensão à divisão dos sacrifícios. É o que a pandemia está impondo, apontam os analistas. Foi assim após a Segunda Guerra Mundial, quando se instituiu o sistema de bem-estar social na Europa.
Conta melhor divida
Gastos para combater a epidemia e a pobreza deixam uma conta. Nos anos 1940, a necessidade de mais recursos levou à criação do imposto para lucros extraordinários das empresas na Europa e nos Estados Unidos. Alíquotas máximas de imposto de renda alcançaram 90% nessas regiões e foram mantidas até os anos 1970.
— Na época, não era moralmente aceito lucro acima da média em tempos de guerra. Pelo menos, repartir o sacrifício tem precedente histórico — diz Pedro Ferreira de Souza.
Hoje, a necessidade de mais recursos para um novo papel do Estado pode impulsionar o debate sobre taxação de fortunas, de lucros e dividendos e alíquotas mais altas de imposto de renda no âmbito de reformas tributárias. Mas, Maria Lucia Werneck, professora da UFRJ e especialista em sistemas de proteção social, lembra que no pós-guerra havia a ameaça do socialismo soviético e o capitalismo precisava dar uma resposta à população:
— Hoje, não temos essa disputa. O que ascendeu foi o movimento das mulheres, dos negros, dos gays, das minorias. Talvez com solidariedade fiscal possamos criar um novo estado de bem-estar social.
O debate sobre a conta da pandemia segue em aberto.
— Agora vejo, como em 2008, o aumento de dívidas (públicas). Mas não descarto, a médio prazo, uma vinculação do debate da tributação de grandes fortunas com a proteção social — disse Soares, do Atlantic Council.
Claudio Ferraz, professor da Universidade de British Columbia, no Canadá, lembra que só renda mínima universal não basta: é preciso emprego formal, protegido.
—Vejo (transferências) como uma medida paliativa para absorver choques. Não é uma política que deva vir sozinha. O ideal é discutir como criar emprego para todo mundo, como formalizar nossa economia. Ela deve ser pensada junto com outras políticas que venham a dar dignidade às pessoas.
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