“É preciso transformar o Estado cartorial e patrimonialista num Estado eficiente e a favor da população”
Cássia Almeida | O Globo
André Lara Resende, um dos autores do Plano Real, avalia que, no mundo póspandemia, abre-se a oportunidade para a revalorização do Estado, tornando-o “mais eficiente e a favor da população”. Em entrevista por email, ele prevê um reequilíbrio entre produção nacional e externa e que “o liberalismo econômico primário” será “imperiosamente revertido”.
• O Estado pós-pandemia ficará mais presente na economia?
Diante de uma crise dessas proporções, o sistema de mercado é incapaz de dar as respostas adequadas. Ao contrário, corre o risco de se tornar disfuncional. Om ercadoé baseadonacompetição e no individualismo, mas o momento, mais doque nunca, exige coordenação e cooperação. O liberalismo econômico primário que pauta apolítica econômica no país será imperiosamente revertido. Será uma oportunidade para revalorizar o Estado e apolítica, para transformar o Estado cartorial e patrimonialista num Estado eficiente e a favor da população. É uma oportunidade para que a vida pública volte a atrair pessoas bem intencionadas e qualificadas. Infelizmente, haverá sempre risco de que acrise venha a reforçar o apelo do autoritarismo, como sacrifício das verdadeiras conquistas do liberalismo ilustrado. O Estado, chamado a intervir, pode vira se tornar ainda mais burocrático e policialesco.
• Vê espaço para um debate sobre tributação mais equânime?
Uma crise dessas proporções nos leva a refletir, nos obriga a reavaliar os valores e o modo de vida contemporâneo. O capitalismo financeiro turbinado das últimas décadas, que concentrou riqueza, inibiu a competição e destruiu empregos, será inevitavelmente questionado. A tributação pode e deve ser usada para proteger os necessitados e reduzir as desigualdades, mas enquanto a economia estiver com capacidade ociosa e desemprego — e temo que seja por um longo tempo —não se deve aumentar impostos, mas desenhar políticas públicas inteligentes para o aumento da produtividade e do bem-estar.
• A disputa global por equipamentos médicos vai mudar a visão estratégica dos governos, fugindo da dependência externa?
Sem dúvida. A vulnerabilidade do sistema de produção hiper globalizado ficou evidente, não apenas do ponto de vista dos estados nacionais, mas também das empresas que, para reduzir custos e necessidade de capital de giro, passaram a funcionar no sistema de just in time, praticamente sem estoques. Mesmo em tempos menos atribulados, a gestão das cadeias de fornecedores tinha se transformado num ponto crítico para as empresas. A produção globalizada não deverá ser completamente revertida, mas haverá um reequilíbrio, com maior peso para a produção local. A desindustrialização nacional, levada ao paroxismo, será certamente reavaliada.
• Que novo pacto social pode sair da crise, passada a pandemia?
Ao longo da História, grandes epidemias sempre provocaram mudanças de regime. Distorções do capitalismo financeiro globalizado das últimas décadas já vinham provocando desconforto e questionamento. É improvável que se volte ao mundo de antes da crise, ma sé difícil fazer previsões sobre como será o mundo do pós-crise. Se a História serve de referência, é possível que haja efetivamente progresso em direção a uma sociedade melhorem ais justa, mas não antes de um período de grande turbulência política e social.
• Como está vendo a resposta econômica à crise no Brasil?
Muito aquém do necessário. O dogmatismo fiscalista, a crença equivocada de que é sempre preciso equilibrar o orçamento fiscal sob risco de quebrar o Estado, torna ainda mais difíceis a aprovação e a implementação das políticas necessárias neste momento. É preciso reagir rápido e pôr em prática políticas de auxílio emergencial, tentar preservar o emprego e garantir imediatamente renda mínima para que toda família possa sobreviver na crise. Não se tratam de políticas anticíclicas, de estímulos à economia, algo que será necessário uma vez superada a epidemia, mas de políticas voltadas para aliviar o impacto da recessão e do desemprego. É preciso deixar de lado pruridos burocráticos, confiar e ousar, para evitar uma verdadeira tragédia humanitária.
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