- O Estado de S.Paulo
Não temer o perigo e os seus remédios exige em todos os planos a coragem da liderança
A generalizada magnitude do impacto do coronavírus é opressiva. Instiga, na anormalidade dos isolamentos, um parar para pensar o alcance e significado do ineditismo de uma situação geradora, em escala planetária, de medo e insegurança.
A covid-19 é um grande exemplo do que Proudhon qualificou como a fecundidade do inesperado. Surpreendeu governantes e governados. Foi muito além dos cálculos dos peritos em riscos. Não se esgota no âmbito do acaso, que “tem do confuso mundo o regimento”, como diz Camões.
As medidas de contenção da pandemia, baseadas no necessário distanciamento e isolamento social que a ciência no estágio atual do conhecimento prescreve, vêm fulminando a lógica normal da vida cotidiana e da economia. Tornaram uma realidade presente a clássica figura literária de um “mundo às avessas”. Evoca o que diz Gil Vicente: “O mundo é já desgorgomelado/ tudo bem se vai ó (ao) fundo” (Auto Pastoril Português). A palavra desgorgomelado, segundo os estudiosos do léxico vicentino (Teyssier), é um neologismo rústico, calcado em degolado, ou seja, garganta cortada. Aponta assim para a inédita crise de um mundo que não está respirando social e economicamente. Corre o risco de afundar.
As sociedades contemporâneas, inseridas, para o bem e para o mal, num mundo interconectado e interdependente, são sociedades de risco, sujeitas aos desgorgolamentos. A ampliação do conhecimento vem permitindo, na lida com esses desafios, construir em todas as esferas mecanismos e processos de gestão de riscos de todos os tipos – políticos, econômico-financeiros, empresariais, ambientais, de saúde. A gestão de riscos permite ampliar o escopo da prudência mediante a elaboração das modernas técnicas de múltiplos cenários. Estes têm como tarefa avaliar as contingências de um sem-número de imprevistos que transbordam das regularidades do que é tido como usual.
Independentemente da maior ou menor existência de condutas negligentes, em todos os âmbitos da conduta humana, inclusive no plano da saúde e da ordem mundial, existem limites ao horizonte do previsível.
Com efeito, uma característica dos sistemas complexos do mundo contemporâneo, em que estamos inseridos, é a de que é impossível explicá-los completamente e, por via de consequência, ter a capacidade de controlá-los inteiramente. A complexidade induz o potencial da radicalidade da incerteza e dos seus desdobramentos em todas as áreas. É o que observa Thierry de Montbrial – um dos grandes estudiosos da ação estratégica – em texto de 1.º/4 sobre o coronavírus. É o que explica a vigência da observação de Proudhon sobre a fecundidade do inesperado e de seus desdobramentos, que estão e vão impactar a dinâmica de uma já precária ordem mundial permeada pelas forças centrífugas da fragmentação.
Como enfrentar em nosso país o inesperado da covid-19? Para o homem de razão e de ação não cabe a insensível resignação perante a fatalidade dos óbitos. Não cabe igualmente alimentar a expectativa de salvação em curto prazo por meio de um remédio ou de uma vacina que para serem descobertos e aplicados pressupõem o tempo da pesquisa, que não é o tempo da urgência da crise. O homem de razão e de ação parte da objetiva percepção de que estamos diante de um labirinto de dificuldades e cabe buscar os difíceis caminhos de saída recorrendo ao repertório dos conhecimentos existentes e aos cenários de contingência que permitem.
Na condução das políticas públicas da saúde e da economia, em especial na situação-limite do coronavírus, é indispensável ter zelo. Zelo é incompatível com o negacionismo em relação aos fatos e com improvisações e rompantes que alimentam a insegurança, corroem a confiança e dividem a sociedade.
“O verdadeiro zelo teme o perigo e trata dos remédios”, ensina o padre Antonio Vieira, que adverte: “O maior perigo não é quando se teme o perigo, é quando se teme o remédio”. Os remédios são aqueles que o estágio atual do conhecimento e da ciência validados pela Organização Mundial da Saúde indicam. Indicam seja em matéria de contenção e trato médico e hospitalar da pandemia, seja em matéria econômica, nas medidas emergenciais voltadas para mitigar o avassalador impacto da crise na vida das pessoas.
Não temer o perigo e seus remédios exige em todos os planos a coragem da liderança. Delas são exemplos, na área federal, o Ministério da Saúde na meritória gestão de Luiz Henrique Mandetta e a equipe econômica e outras objetivas equipes governamentais; no espaço da Federação, competentes governadores como João Doria e empenhados prefeitos como Bruno Covas; o Congresso e seus dirigentes; as antenas de sensibilidade do STF; a mídia no seu empenho em informar com transparência o que se passa; a sociedade civil nas suas manifestações e na miríade de múltiplos atos de solidariedade e filantropia.
Manter esse rumo, não fragilizar esse sentido de direção, é a única maneira que está ao nosso alcance para impedir um desgorgolamento que nos afundará num “mundo às avessas”.
* Professor emérito da USP, foi ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
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