- O Estado de S.Paulo
Instrumentos públicos não podem ficar à mercê de delírios do governante
Derrubado Luiz Mandetta, o inimigo interno que Jair Bolsonaro resolveu combater em meio à maior emergência de saúde do planeta, os esforços do presidente da República se voltam agora para uma tríade de adversários: Rodrigo Maia, João Doria e o STF, com menor intensidade (até porque, desde que assumiu, ele mostra certo temor de atacar o Judiciário com a sem-cerimônia com que atinge outros Poderes e instituições).
A razão é a velha paranoia presidencial. Acossado por fantasmas persecutórios desde muito antes de ser presidente, Bolsonaro vê um complô para derrubá-lo. O foco do momento é o presidente da Câmara, até pela importância do cargo para um eventual processo de impeachment.
Para atiçar ainda mais o medo do capitão, a sexta-feira foi o aniversário de quatro anos da queda de Dilma Rousseff. À parte pedaladas e economia em frangalhos, a condição definitiva para o impeachment avançar foi a decisão de Eduardo Cunha, então presidente da Câmara, de levá-lo a cabo depois de a presidente o desafiar.
Bolsonaro estava lá. Ele sabe que, quando a Câmara vira, o presidente está em apuros. Um fato foi fator decisivo para o presidente pirar. A Câmara deu 30 dias para que ele apresente seu resultado do teste para covid-19. Desde que voltou dos Estados Unidos, após o Carnaval, o presidente se esquiva dessa exigência básica de transparência. Já alegou que fez teste com nome falso e que os exames são sigilosos por questão de Estado. A Câmara resolveu pagar para ver.
Ter mentido numa questão tão séria quanto a própria saúde em meio a uma pandemia, ainda mais quando apregoa por aí que se trata de uma “gripezinha”, que as pessoas devem “enfrentar o vírus” e sai pela rua cumprimentando pessoas após assoar o nariz seria, sim, crime de responsabilidade.
O Legislativo de 2020 está a léguas de distância do de 2016 quanto à disposição para um impeachment. Embora tenha grande ascendência sobre várias bancadas, Maia não é Cunha em termos de métodos de persuasão. Além disso, deputados e senadores avaliam que o momento de crise sanitária, humanitária, social, econômica e política agudas não combina com um processo de impeachment.
Mas Bolsonaro segue atormentado por seus fantasmas. Isso não seria um problema sério se os meios para demonstrar sua paranoia fossem os de sempre: guerrilha nas redes sociais e entrevistas descompensadas. Porém, há indícios de que aparelhos de Estado estão sendo usados para alimentar a paranoia, o que aumenta em muito a gravidade da situação. Há indícios de que a Abin, a agência de inteligência do governo, está sendo usada para espionar Maia, Doria e sabe-se lá mais quem.
Diante da reação até tímida do Congresso, pela gravidade da acusação, o Planalto desmentiu a informação, mas a total falta de transparência com que este governo trata a coisa pública não permite acreditar na negativa. É preciso cobrar e investigar o uso do Estado para saciar a fome de teorias da conspiração do capitão.
A Hungria é um caso a ter na mira. Lá, Viktor Orbán, um dos ídolos da família Bolsonaro, aproveitou a pandemia para dar um golpe de Estado.
Nesta semana, em meio a uma fala sem pé nem cabeça quando consumava sua birrenta troca de ministro da Saúde, Bolsonaro lembrou que é sua prerrogativa decretar estado de sítio. Não é a primeira vez que essa expressão aparece, meio “sem querer”, desde que a crise começou.
É preciso que as instituições reforcem a vigilância, porque chefe de Estado paranoico e autoritário, um risco de “golpe” inventado e sustentado nas redes sociais, Estado à mercê da paranoia e sociedade amedrontada formam um combo bastante propício a tentativas de virada de mesa.
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