- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
As pessoas se dessocializam ao não conseguirem se reconectar diariamente e em cada momento do dia com os demais em nome da ordem necessária à vida em sociedade
O complicado problema decorrente da gestão antissocial da economia, que agrava os efeitos sociais da pandemia e das crises, é o da dessocialização, sobretudo das crianças e dos jovens. É seu efeito socialmente desorganizador e é o de outras modalidades inesperadas de descontinuidade nas relações sociais. São períodos em que a sociedade de referência de conduta das vítimas fica entre parênteses. Elas se ressocializam para o provisório, desenvolvem sociabilidades alternativas e precárias que afetam desde as identidades sociais até o comportamento individual e coletivo.
Situações individuais traumáticas promovem esquecimento das referências sociais da socialização primária. Observei isso no estudo que fiz sobre crianças raptadas na região amazônica. Tanto de índios raptados por brancos ou de brancos raptados por índios de determinada tribo ou de índios de uma tribo raptados por índios de outra tribo. Os abismos culturais e situacionais invalidam o conhecimento que orienta a conduta das vítimas.
Estamos vivendo duas situações mais intensamente dessocializadoras, que afetam ainda adultos e idosos de ambos os sexos. Uma é a do confinamento, que atinge maior número de pessoas. Outra é a da transgressão das regras sanitárias nos ajuntamentos de igrejas, de botequins, de rua, que expressam os valores da classe média, tendencialmente egoísta, no conflito entre o ter e o ser.
Outra, é a da comunidade relacional, a que junta duradouramente, a que permanece. No confinamento, ela se mutila. Fica reduzida à comunicação precária, à supressão de componentes decisivos no processo interativo, como a visão, o toque, o gesto, o ruído, os sinais que, mesmo invisíveis, são perceptíveis, tudo que dá sentido aos verdadeiros relacionamentos sociais.
É por aí que se deve refletir sobre os prováveis problemas do futuro próximo, que serão, em primeiro lugar, problemas sociais. O cerne de uma tragédia como a que estamos vivendo está no amplo processo de dessocialização que dela resulta e suas consequências.
Qualquer um de nós pode verificar que está hoje cercado de silêncio. Não só o dos que já não dão notícias, não respondem nem perguntam. Nosso cotidiano tornou-se redutivo. Toda a parafernália comunicacional ultramoderna funcionou nos primeiros dias. Era a comunicação divertida do supérfluo.
Já não funciona mais, porque agora se trata da sociabilidade que nos faz humanos. Gente não é substituível por relacionamentos descartáveis, desconectáveis. Internet, WhatsApp, telefone, tudo que é desligável desumaniza o ser humano. É útil, não há dúvida, mas refaz os humanos como seres objetos, seres coisas.
Sociedades são feitas de gente e suas relações sociais. Todas as situações socialmente catastróficas, como a de uma pandemia, têm como consequência fundamental a desorganização social, a anulação de valores sociais de referência. É a anomia, nome sociológico da patologia social. Seus indícios são os linchamentos, feminicídio, violência policial, governo desnorteado, corrupção às custas da pandemia, assassinatos.
As pessoas se dessocializam ao não conseguirem se reconectar diariamente e em cada momento do dia com os demais em nome da ordem necessária à vida em sociedade. Terremotos, guerras, revoluções, pandemias, inundações, fome coletiva, violência social, ditaduras, tudo concorre para colocar entre parênteses a sociedade conhecida e vivida. Nessas situações difunde-se o medo, a insegurança, a falta de esperança, a perda de amor à vida e ao outro, o abuso, o colapso da alteridade, essenciais à normalidade social.
No caso brasileiro, a dessocialização já dá evidências em várias modalidades de comportamento anômico dessocializador, agravado pelas anomalias da incerteza política, da falta de rumos do governo, da concepção patológica de poder que começou a se manifestar com as revelações do mensalão e as revelações da Lava-Jato e ganharam seu cume com as eleições de 2018, que propuseram o pior no lugar do ruim.
Quando a doença terminar ou for controlada, sobreviverá como sequela social. Toda uma nova geração de crianças terá perdido um precioso ano de sua infância, que nunca mais será reposto porque terá sido suprimido um momento vital de sua socialização. Será a geração das crianças sem a memória da infância, quando muito memória mutilada. Toda uma geração de jovens ficará afetada porque estará no limiar da idade adulta carregada das deficiências de novos relacionamentos decisivos na formação da personalidade e da identidade.
Todos terão que deixar de ser o que sempre foram. Serão outras pessoas. Olharão no espelho e descobrirão que têm apenas vaga memória de que quem é que estão vendo.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP, Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Fronteira - A degradação do Outro nos Confins do Humano" (Contexto).
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