sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Reforma administrativa é boa promessa de progresso – Editorial | Valor Econômico

Os objetivos da reforma são corretos - mas não valerão para todos, nem ocorrerão agora

Mais de duas décadas depois, o Congresso volta a avaliar uma reforma administrativa do Estado. As pressões financeiras de um serviço público inchado, ineficiente, desorganizado e com privilégios indefensáveis atingiram o limite do suportável. Com 13,4% do PIB gasto com a folha salarial de servidores públicos da União, Estados e municípios - 11,4 milhões de pessoas em 2019 - a racionalização da organização, das carreiras e de como o dinheiro é dispendido na burocracia propiciará uma máquina mais enxuta, de menor custo e capaz de servir melhor o cidadão. O corte de despesas não é a motivação da reforma, e sim subproduto. Se realizada, será um enorme passo à frente.

O grande problema da reforma, porém, e não apenas dessa, é o presidente Jair Bolsonaro, um veterano corporativista, com preferência por buscar vantagens para militares e policiais. O presidente estava decidido a protelar para o ano que vem o projeto, que repousa há muitos meses em suas gavetas. Mudou de ideia, mas nem tanto, e à sua maneira.

A reforma não valerá para os atuais funcionários públicos, assim como o fim de benesses e privilégios atuais que se busca atingir. Seus resultados plenos só serão sentidos em décadas, se ela não empacar no meio do caminho, sempre uma possibilidade diante de lobbies experientes no parlamento. Ao eximir da reforma a atual burocracia e a forma como o Estado os trata, Bolsonaro também se exime de seu desfecho - não se empenhará nesta tarefa.

A reforma administrativa encaminhada ao Congresso não abrange, por impedimento legal, a cúpula da Justiça, o Legislativo e as Forças Armadas. Juízes, membros dos tribunais superiores e promotores, que integram um dos Poderes Judiciários mais caros do mundo, detêm o poder exclusivo de criar penduricalhos e atalhos que ampliem seus vencimentos muito acima dos R$ 39 mil permitidos. Eles mesmos são os responsáveis por julgar mudanças feitas em benefício próprio. No Legislativo, a média salarial é também mais alta que a média do serviço público, cujo topo é o Judiciário. As Forças Armadas têm sido agraciadas com maiores salários e outras vantagens, além de produzirem o maior déficit previdenciário per capita do país.

Assim, além dos servidores atuais, a casta burocrática mais bem-remunerada, com peso importante nas despesas pagas pelo contribuinte, não será, em princípio, atingida pela reforma. Mas isso não é tudo. As mudanças serão apresentadas em três fases. A inicial define os princípios gerais, deixando para a regulamentação nas fases seguintes o que importa: definições de carreiras típicas de Estado, consolidação de carreiras, funções e gratificações. As chances de impedir mudanças, jogando-as para o futuro, ou nunca institui-las por dispositivos legais, é enorme.

Há pontos positivos vitais nas propostas encaminhadas ao Congresso. A estabilidade, à qual todos os servidores têm direito, na prática contemplará apenas as carreiras típicas de Estado, a definir. Os demais servidores perderão em tese a prerrogativa e serão distribuídos em novos vínculos, com o fim do regime único - por tempo determinado, indeterminado, temporário e cargo de assessoramento. Até ser efetivado, o servidor passa por período de experiência de três anos. Ao que tudo indica, a elite que ocupará as carreiras típicas continuarão a adquirir a estabilidade após os três anos e não depois de um prazo maior, como deveria ocorrer.

O funcionalismo desfruta da estabilidade que não existe no setor privado e, além disso, recebem salários na média muito superiores aos dele, para a mesma qualificação e instrução. Por isso, e já é tarde, perderá uma série de aditivos que elevam sua remuneração. Mesmo que vários deles já não existam na União, mas vicejem em Estados, a reforma proibirá promoção ou progressão de carreira por tempo de serviço, a esdrúxula jabuticaba da aposentadoria compulsória como punição, adicionais por tempo de serviço, a incorporação à remuneração permanente por ocupação de cargos de confiança, licenças-prêmio a cada quinquênio, férias superiores a 30 dias etc.

O funcionário, pela reforma, poderá ser demitido por mau desempenho - já podia, mas não é avaliado ou é bem avaliado, pro forma. A reforma se propõe à modernização do sistema público, o aumento de sua produtividade, transparência e equidade. Os objetivos são corretos - mas não valerão para todos, nem ocorrerão agora.

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