segunda-feira, 20 de junho de 2022

Joaquim Ferreira dos Santos: Por que é preciso plagiar Chico Buarque

O Globo

Que tal uma crônica que seja um plágio descarado e, com a ajuda de uma borboleta amarela aqui, um beija-flor ali, tenha o mesmo fito de espantar “a dor filha da puta” de que fala “Que tal um samba?”, a nova música com que Chico Buarque, 78 anos ontem, voltou a encher o país de cultura e esperança?

Uma crônica que não tenha a pretensão de chegar aos pés do samba espetacular, mas, na humildade que caracteriza o gênero, sempre devagar, devagarinho, vá no caminho veríssimo dos buarques propósitos, e, alegre, com leveza, junte-se ao sal grosso que está na ideia da música – dar um banho de descarrego na derrota que grassa.

Um outro compositor popular disse que só é possível filosofar em alemão. Eu puxo a sardinha para a minha brasa. Está provado que as coisas boas da vida, os devaneios, os desafogos, todos ficam melhores se respiram, sem fardão, de camiseta, num papo furado da crônica.

“A vida vale a pena”, escreveu Rubem Braga, “quando você vai andando por um lugar, há um bate bola, você sente que a bola vem para seu lado e, de repente, dá um chute perfeito, e é aplaudido pelos serventes de pedreiro”.

Por isso, quando ouvi Chico Buarque puxando o samba legal para esconjurar a ignorância, contrapondo a elegância de um futuro com a “coluna ereta” depois de “muita bola fora da meta”, foi aí que eu me pus ao plágio descarado. É um gesto de elogio ao grande artista. Sou-lhe orgulhosamente solidário – e, contra as mesmas cascatas e mutretas, tanto ódio sem capacete nessas lambretas, eu apresento as armas ao alcance deste meu ofício porreta.

Que tal uma crônica também legal que contra a força bruta da demência seja tipo assim, quase adolescente? Do mesmo jeito que o brotinho ciclotímico do clássico de Paulo Mendes Campos, amanhecesse chorando, anoitecesse dançando – e com isso suspirasse nas entrelinhas um projeto de transformação feliz.

Uma crônica tipo palavra-puxa-palavra, em que num beijo despretensioso a língua descobre no meio da boca beijada o alumbramento de um drops aniz Dulcora, e encante os jovens com a revelação do prazer dessas coisas antigas.

O samba de Chico tem um cruzamento fraterno com os chorinhos dos Novos Baianos, um jeitão de que a qualquer momento vai entrar numa bodeguita do Buena Vista Social Club e ficar por lá, tomando rum com rumba para brindar à latinidade. Além, é claro, de seguir a trilha de Caetano Veloso, “sem samba não dá”, e confirmar o colega baiano – não é a grana, idiotas, mas a cultura, a beleza pura da pele escura.

Eu quereria o mesmo. Uma crônica com a zuenir ventura e felicidade de juntar os sabinos deste métier, unir os ubaldos desta civilização escrita. Ela seguiria o tom da letra do Chico Buarque. Sem perder a calma, de cabeça fria, inventando palavras bonitas. Uma crônica de categoria que ajudasse na lembrança das coisas braguianamente boas da vida, o trago no lugar do estrago, e pedisse também o fim urgente dessa borrasca insuportável.

Na letra de “Que tal um samba?”, Chico sonha uma vitória com gol de bicicleta. Eu, plagiador confesso, radicalizo o processo. Contra esse tempo feio, torço pela goleada com gol de escanteio.   

 

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