segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Demétrio Magnoli -17h44, hora de Moscou

O Globo

O pouso de Nancy Pelosi em Taipé é uma evidência definitiva de que Washington opera sem bússola estratégica

O avião militar de Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos EUA, aterrissou às 22h44 em Taipé, capital de Taiwan, na terça passada. Em Moscou eram 17h44, e o sol brilhante do verão russo incandescia as cúpulas douradas do Kremlin. Naquele momento, Putin terá erguido um brinde. A troco de nada, o governo Biden violava o catecismo geopolítico, estabelecendo uma confrontação simultânea com seus dois rivais nucleares.

Pelosi chefia um Poder separado e, portanto, não precisa de autorização do Executivo para viajar ao lugar que quiser. Há décadas, ela denuncia as políticas autocráticas da China. Mas, no fim das contas, pertence ao mesmo partido de Joe Biden, que tinha o dever de dissuadi-la da mais imprópria das visitas. O pouso em Taipé é uma evidência definitiva de que Washington opera sem bússola estratégica.

Timing é tudo. Pelosi resolveu provocar Xi Jinping em meio à invasão russa da Ucrânia e às vésperas do Congresso do Partido Comunista Chinês que reconfirmará seu poder absoluto. “Não é uma boa ideia”, declarou Biden, atribuindo o diagnóstico ao Pentágono. O presidente queria esclarecer aos chineses, de modo oblíquo, que a Casa Branca não aprovou a visita. Na prática, escancarou ao mundo a disfuncionalidade de seu governo.

Xi pensa como um líder totalitário. Separação de Poderes não está entre os conceitos que ele reconhece. De seu ponto de vista, a viagem da presidente da Câmara, que ocupa o terceiro lugar na linha sucessória americana, equivale a uma visita de Estado. Mais: seria um gesto deliberado para humilhá-lo na hora exata de sua programada glorificação.

A política de “Uma só China” figura como o dogma mais sagrado da religião nacionalista chinesa. Os EUA seguem uma política de ambiguidade estratégica sobre Taiwan, combinando a oposição a uma eventual declaração de independência da ilha com crípticas advertências à China contra o uso da força. Mais de uma vez, escorregando para fora da trilha oficial, Biden afirmou um compromisso dos EUA de proteção militar a Taiwan na hipótese de ataque chinês.

As frases imprudentes — explicitação de algo que deveria permanecer implícito — geraram céleres reinterpretações de porta-vozes da Casa Branca, destinadas a reafirmar a orientação tradicional. A visita de Pelosi amplifica a desconfiança do regime chinês sem acrescentar nada à segurança de Taiwan.

A reação visível chinesa não trouxe surpresas. Jatos de combate cruzaram o Estreito de Taiwan minutos após o pouso da aeronave de Pelosi, circulando pelo espaço aéreo da ilha. Durante dias, a China lançou mísseis e promoveu exercícios militares ao largo de Taiwan, mesmo em trechos de suas águas territoriais. A reação invisível provavelmente mirará alvo diferente: a Ucrânia.

Até agora, a solidariedade chinesa à guerra de conquista de Putin não se estendeu ao fornecimento de armas à Rússia. Nesse ponto, Xi curvou-se às advertências de Washington — e é isso que pode mudar. As forças russas, depauperadas, precisam de um influxo de equipamentos bélicos, especialmente drones. A China tende a enxergar o apoio direto ao esforço de guerra russo como a mais certeira resposta ao gesto que qualifica como provocação.

Pelosi inscreveu sua visita na moldura de uma confrontação global “entre autocracia e democracia”. Antes da invasão russa da Ucrânia, Biden empregara a mesma senha inúmeras vezes, conferindo forte coloração ideológica à política externa dos EUA.

A guerra na Europa conduziu o presidente de volta ao impiedoso mundo da realpolitik. O giro foi ilustrado exemplarmente por sua reconciliação humilhante com o autocrata saudita Mohammed bin Salman, que classificara como “pária”, e pela discreta reaproximação com o autocrata venezuelano Nicolás Maduro. Apesar disso, temendo a artilharia crítica dos republicanos no ano eleitoral, não se esforçou o suficiente para convencer a parceira democrata da Câmara a adiar sua viagem desastrada.

Putin brindou à bagunça conceitual que (des)orienta a política mundial dos EUA. O chefe do Kremlin não conta com um amigo como Trump — mas ao menos tem um inimigo como Biden.

2 comentários:

Anônimo disse...

Tudo por causa de sua rejeição, está sentindo a corda no pescoço para o último mandato, já não é sem tempo de ceder o posto para pessoas mais jovens e úteis.

ADEMAR AMANCIO disse...

Só o fato de Biden ter tirado Trump da Casa Branca já vale minha admiração e respeito.