sexta-feira, 12 de agosto de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Editoriais / Opiniões

União ampla pela democracia confronta Bolsonaro

Valor Econômico

O leque amplo de adesão às cartas e seu conteúdo mostram que o apoio a aventuras antidemocráticas não é grande e que haverá vigilância ativa para garantir o respeito às regras do jogo

Quase 34 anos após a promulgação da Constituição de 1988, a sociedade civil organizada teve de vir a público para defender seu espírito democrático, sempre renovado por meio de eleições livres e transparentes, garantidas desde 1996 pelo sistema de votação eletrônico. Em ato na Faculdade de Direito da USP, foram lidas a “Carta aos Brasileiros e Brasileiras pelo Estado Democrático de Direito”, que até a metade do dia havia recebido 956 mil assinaturas, e a “Carta em defesa da democracia e justiça”, encabeçada pela Fiesp e subscrita por várias entidades representativas de empresários e centrais sindicais. As manifestações foram serenas, apartidárias e pluralistas.

A mobilização em torno das cartas marcou um degrau superior de rejeição ativa aos ataques feitos pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, às instituições fiadoras da democracia e, em especial, ao sistema de votação, fiscalizado com competência, e até hoje sem máculas, pelo Tribunal Superior Eleitoral. Até há pouco os arroubos autoritários de Bolsonaro eram tolerados com inquieta paciência por boa parte dos brasileiros, por um motivo básico - ele chegou ao Palácio do Planalto vencendo eleições limpas, como todos os presidentes após a redemocratização do país.

No entanto, a tolerância parece ter chegado ao fim e cruzado um limite quando o presidente passou a questionar sem provas o sistema que o elegeu, alegando fraudes em sua vitória, o que não é pouco, mas não é tudo. Bolsonaro ameaça não aceitar os resultados das próximas eleições, nas quais, segundo as pesquisas, se encontra em enorme desvantagem, convoca seus apoiadores a se insurgirem contra o TSE e o formato eleitoral consagrado e, por fim, traz riscos ao sistema democrático. O presidente nunca escondeu sua inequívoca admiração pela ditadura militar.

O presidente escolheu o dia da Independência do Brasil para suas diatribes desarrazoadas contra o STF, o TSE, as urnas e a armação ampla e conjunta para implantar o comunismo no país - Bolsonaro vive no túnel do tempo, a endeusar ditadores, homenagear torturadores e ressuscitar inimigos inexistentes.

Se fossem apenas resmungos, as falas do presidente passariam só por criações de uma mente perturbada. Mas Bolsonaro se cercou dos partidos oportunistas que hoje dominam o Congresso para ampará-lo em uma eleição na qual disse que não aceitará a derrota. Além do caro escudo civil partidário, pago pelas emendas secretas, o presidente tem cobrado - e recebido apoio - do ministro da Defesa e da cúpula do Exército para juntar-se a ele na tarefa de desmoralizar as urnas eletrônicas e, por consequência, o sistema eleitoral brasileiro, o mesmo que lhe permitiu sair da obscuridade para o posto mais importante da República.

Enquanto Bolsonaro sobe o tom das ameaças, o mesmo fazem os militares, que foram convidados para participar da comissão fiscalizadora do processo eleitoral pelo Tribunal Superior Eleitoral. O ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, fez exigências descabidas, como, por exemplo, requisitar os arquivos das eleições de 2014 e 2018. O TSE negou o acesso e lembrou ao ministro que os militares não são instância revisora de eleições.

Episódios mais graves se sucederam. O coronel Ricardo Sant’Anna, chefe da Divisão de Sistemas de Segurança e Cibernética da Informação do Exército, ao mesmo tempo em que representava a instituição no trabalho de fiscalização no TSE tinha nas redes sociais opinião formada, espalhando fake news sobre as urnas. Foi expulso da comissão. O Exército emitiu nota reclamando do “descredenciamento”, sem mencionar que Sant’Anna, como oficial da ativa, não poderia emitir opiniões políticas.

Agora, o ministro da Defesa solicitou que a equipe de militares que examina o código fonte seja dobrada, para 18 militares, e o prazo limite, de 12 de agosto, seja estendido para 19 de agosto. O Planalto manifestou intenção de que os militares façam contagem paralela dos votos nas eleições, sugerindo apoio deles aos interesses tumultuários do presidente.

As manobras mobilizaram a sociedade, que passou a ver ameaça real à democracia nas provocações de Bolsonaro. O leque amplo de adesão às cartas e seu conteúdo mostram que o apoio a aventuras antidemocráticas não é grande e que haverá vigilância ativa para garantir o respeito às regras do jogo. As mobilizações podem demover Bolsonaro e seus fiéis de desrespeitá-las.

Um dia histórico de união em defesa da democracia

O Globo

Leitura de manifestos com eventos em várias cidades dá recado claro: Brasil não tolerará rumo autoritário

É provável que o dia 11 de agosto de 2022 passe doravante a figurar entre os mais relevantes na trajetória democrática do Brasil. Foram lidas duas cartas em defesa da democracia em ato na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), mesmo local onde o jurista Goffredo da Silva Telles Jr. leu, em agosto de 1977, sua Carta aos Brasileiros, marco no início da derrocada da ditadura militar. Outras cidades também foram palco de eventos semelhantes.

Com o pátio das arcadas do Largo São Francisco lotado, os presentes ouviram o conteúdo da Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito, lançada pela USP e inspirada na de 1977. Antes foi lido o manifesto Em Defesa da Democracia e da Justiça, encabeçado pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e assinado por entidades representativas dos setores produtivos e da sociedade civil. Ambos já eram públicos.

Os dois textos apoiam de forma enfática a democracia e o sistema eleitoral brasileiro. Condenam os ataques mentirosos e reiterados contra as urnas eletrônicas.

O evento encheu de manifestantes a praça em frente ao prédio da São Francisco e comprovou o que já demonstravam quase um milhão de assinaturas em apoio à Carta da USP e as mais de cem entidades que ratificaram a iniciativa da Fiesp.

Reuniu cidadãos de diferentes classes sociais, representantes de movimentos da sociedade civil, estudantes, profissionais liberais, acadêmicos, ex-ministros de distintas administrações, líderes sindicais, empresários, artistas e celebridades.

Havia assalariados e milionários; integrantes da comunidade LGBTQIA+ e héteros; negros e brancos; gente de esquerda, de centro ou direita; quem defende a abertura comercial e fãs do protecionismo; quem empunha a bandeira das privatizações e crentes no estatismo; quem é a favor da descriminalização das drogas e quem é contra; feministas e opositores do aborto; quem só cursou o ensino fundamental e doutores diplomados pelas melhores universidades; quem gosta de funk, sertanejo, samba, pagode, rock, jazz ou música erudita; quem tem plano de saúde privado e pacientes do SUS, brasileiros nascidos no Sul, Sudeste, Nordeste, Norte e Centro-Oeste.

O que une a todos? A convicção de que os brasileiros não permitirão que o país siga o caminho do autoritarismo. O roteiro do golpe na “versão século XXI” não conta obrigatoriamente com tanques nas ruas. Costuma começar com um populista eleito de modo democrático para, logo em seguida, dar início à lenta corrosão das instituições formais da democracia.

A História recente mostra que a estratégia é usada por líderes de extrema direita e de extrema esquerda, sem distinção. O jogo só é válido se eles ganham sempre. É contra esse pensamento que vastos segmentos da sociedade brasileira esqueceram suas muitas diferenças e se uniram em favor das urnas eletrônicas e da Justiça. O recado está dado: o Brasil não será uma Venezuela nem uma Hungria. Aqui prevalecerá o Estado Democrático de Direito.

As cartas e a Carta

Folha de S. Paulo

Atos pluralistas mostram que democracia se tornou a pele cívica dos brasileiros

Movimentos cívicos em todo o país deixaram claros ao pretendente a autocrata no Palácio do Planalto os limites inegociáveis da democracia brasileira. As eleições periódicas, o respeito a seus resultados e a posse dos vitoriosos inscrevem-se em pedra na Constituição de 1988.

No largo de São Francisco, na capital paulista, deram-se nesta quinta (11) duas declarações de intransigência com a ordem democrática.

Entidades sindicais, empresariais e de outros segmentos da sociedade compuseram um arco-íris de filiações, convicções e finalidades para reafirmar seu compromisso comum com os marcos civilizados da disputa política, o império da lei e os direitos fundamentais.

Também no largo situado na região do primeiro povoamento urbano de São Paulo, o pátio da Faculdade de Direito —a qual completava 195 anos de fundação— foi o cenário da leitura da carta, subscrita por centenas de milhares de cidadãos, cujo mote é "Estado Democrático de Direito sempre!".

Atos convergentes no objetivo de realçar as fronteiras intransponíveis ao autoritarismo erguidas pelo regime constitucional e no de reconhecer a eficácia e a confiabilidade do sistema eleitoral ocorreram em outras cidades brasileiras.

De todas essas manifestações salienta-se o amálgama entre empregados e patrões, progressistas e conservadores, liberais e estatistas, desconhecidos e famosos, população e elite. Elas demonstram que a democracia no país não se restringe a alguns enunciados afixados num pedaço de papel. Tornou-se a pele cívica dos brasileiros.

Esse conjunto de valores comuns contém um ensinamento que custou milênios de sofrimentos, violência e miséria à humanidade para desenvolver-se —o compartilhamento do poder político com garantias de liberdades e direitos individuais franqueia a todos o exercício pleno do potencial criativo e a busca pelo bem-estar.

Apenas os pactos democráticos, porque genitores de instituições com autonomia, respeito à lei e responsabilidade, asseguram redes intertemporais de solidariedade para os concidadãos em carência de renda e outras condições materiais. Apenas eles, e pelas mesmas razões, podem propiciar estabilidade a negócios e investimentos.

Quando o poder se concentra num tirano ou num estamento, nada está garantido aos súditos, a começar da vida e da liberdade.

Regime das leis e da soberania popular, a democracia exige submissão aos procedimentos pactuados pelos representantes da população. Respeito às autoridades designadas para conduzir as eleições e obediência às urnas fazem parte do acordo que está na Carta, o que as cartas de 11 de agosto fizeram muito bem em reavivar.

Um Brasil altivo defende a democracia

O Estado de S. Paulo

A leitura das ‘Cartas’ em defesa do regime democrático e do Judiciário mostrou que o País não está dividido em relação à democracia, valor inegociável para toda a sociedade

Se o presidente Jair Bolsonaro envergonhou profundamente o País ao difamar a democracia brasileira perante embaixadores estrangeiros, a resposta da sociedade em defesa das eleições e do regime democrático orgulhou e emocionou o País. Ontem, em todo o território nacional, foram lidos manifestos em defesa do Estado Democrático de Direito, numa demonstração luminosa de que a sociedade está vigilante e não aceita retrocessos autoritários. A democracia é um valor inegociável, o patamar mínimo imprescindível. Não é questão de ser de esquerda, direita ou centro. É apenas a firme compreensão de que não existe projeto de país sem respeito às regras e às instituições democráticas.

Na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, foram lidos dois manifestos. Elaborada pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e que recebeu a adesão da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), da União Nacional dos Estudantes (UNE), da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e de muitas outras entidades, a carta Em Defesa da Democracia e da Justiça é expressão contundente de que o apoio ao regime democrático e ao Poder Judiciário une os mais diversos setores e as mais variadas ideologias. “A todos que exercem a nobre função jurisdicional no país, prestamos nossas homenagens neste momento em que o destino nos cobra equilíbrio, tolerância, civilidade e visão de futuro”, diz a carta da Fiesp. A sociedade não está dividida em relação à democracia e às instituições democráticas.

Como ressaltou o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, que leu o manifesto da Fiesp no Salão Nobre da faculdade, “hoje (ontem) é um momento grandioso, em que capital e trabalho se juntam em defesa da democracia. Estamos celebrando aqui com alegria, com entusiasmo, o hino da democracia”.

Em seguida, no pátio das Arcadas, foi lida a Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito, a Carta de 22, que até ontem à tarde havia recebido mais de 950 mil assinaturas, sendo mais de 160 mil professores, 28 mil engenheiros, 14 mil médicos, 9 mil desempregados, 6 mil policiais, 5 mil enfermeiros, 4 mil dentistas e 4 mil motoristas. Esses números explicitam que a defesa da democracia não é uma causa partidária ou elitista. É uma causa do povo brasileiro. “São intoleráveis as ameaças aos demais poderes e setores da sociedade civil e a incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional”, diz a Carta de 22.

Na ocasião, o diretor da Faculdade de Direito da USP, Celso Campilongo, lembrou três aspectos fundamentais do Estado Democrático de Direito, todos eles enxovalhados pelo presidente Bolsonaro. O primeiro é a “observância do princípio da legalidade, do respeito às leis”, ou seja, “tudo o que não estão querendo fazer com o nosso sistema eleitoral”, disse, referindo-se aos ataques de Jair Bolsonaro contra as urnas eletrônicas. O segundo aspecto, lembrou o professor Campilongo, é o princípio da publicidade.

Consequência direta dos dois anteriores, o terceiro aspecto do Estado Democrático de Direito é o “controle da legalidade e da publicidade pelas instituições com competência para fazê-lo”. E o professor lembrou que quem tem competência para organizar as eleições, apurar os votos e proclamar os resultados é o Tribunal Superior Eleitoral. “O resto é gente sem competência jurídica e sem competência moral para se intrometer no processo eleitoral brasileiro”, disse Campilongo, num ensinamento especialmente necessário nos dias de hoje, em que o bolsonarismo tenta envolver os militares na apuração das eleições, atribuição totalmente estranha às funções constitucionais das Forças Armadas.

Após a leitura da Carta de 22 no pátio das Arcadas, tocou-se o Hino Nacional. Seus versos ressoaram forte no centro de São Paulo e em todo o Brasil. Eram a certeza de que, apesar de toda a escalada de violência de Jair Bolsonaro contra a democracia, continua havendo um País altivo, que não deseja ser refém dos autoritários e que lutará para defender suas instituições, suas eleições, sua democracia. Esse é o verdadeiro e profundo Brasil.

Fora de hora e lugar

Folha de S. Paulo

Proposta de reajuste apresentada pelo STF acentua distorções da máquina pública

Seria injusto criticar o reajuste salarial para os servidores da Justiça, defendido pelo Supremo Tribunal Federal, por dar novo mote à ofensiva bolsonarista contra as instituições —afinal, o Judiciário não deve se deixar intimidar por ataques liderados pelo chefe de outro Poder. A proposta, porém, é problemática por muitas outras razões.

A remuneração dos ministros do STF representa o teto salarial do serviço público —hoje de nada desprezíveis R$ 39,3 mil mensais. Com o aumento ambicionado de 18%, o valor subiria a R$ 46,4 mil, e os limites seriam ajustados para o restante do funcionalismo, incluindo o dos entes federativos.

O teto para os vencimentos está entre as várias questões mal resolvidas da administração pública nacional. É fato notório que órgãos diversos, em especial no Judiciário e no Ministério Público, valem-se de penduricalhos extrassalariais, como auxílios e abonos, para driblar as restrições da lei.

Tentativas de disciplinar o cumprimento dos limites se acumulam há anos no Congresso Nacional, sempre vencidas pela cumplicidade corporativista. Não obstante, a alegada defasagem do teto ante a inflação acumulada sempre serve de justificativa para reajustes.

A benesse pleiteada, fora da realidade da grande maioria dos trabalhadores do país, certamente dará impulso a uma nova onda de reivindicações dos servidores públicos.

Recorde-se que, no primeiro semestre, uma iniciativa atabalhoada de Jair Bolsonaro (PL) para elevar os salários dos policiais federais despertou manifestações e greves das demais categorias, com prejuízos consideráveis para a prestação de serviços do Estado. A tensão foi contida, mas não desapareceu.

O atual governo, como os antecessores petistas, negligenciou a reforma administrativa por afinidades com as corporações da máquina pública. Com isso, os gastos com pessoal apenas são controlados com expedientes precários, em particular o represamento de contratações e salários.

O Judiciário é um caso à parte nesse rol de distorções —consome algo como 1,5% do Produto Interno Bruto, patamar sem paralelo nas principais economias do mundo.

Por fim, a próxima administração terá o desafio orçamentário de equacionar a ampliação do Auxílio Brasil e outras despesas promovidas sem planejamento pelo desespero eleitoreiro de Bolsonaro. A prioridade não poderá ser o salário de quem já ganha muito bem.

A deflação não chega aos mais pobres

O Estado de S. Paulo

Disposto a torrar bilhões em recursos para agradar a taxistas, caminhoneiros e donos de automóveis, Bolsonaro aumenta risco fiscal e retroalimenta a inflação que se jacta de combater

O governo Jair Bolsonaro festejou como nunca a deflação de 0,68% registrada em julho pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). A menos de dois meses de uma eleição em que o presidente permanece em segundo lugar, de acordo com as pesquisas, pouco importa que esse recuo seja pontual e concentrado em itens como energia e combustíveis ou que a inflação acumule um avanço de 10,07% nos últimos 12 meses. Fora das redes sociais, onde a realidade se impõe, a população lida com um cenário generalizado de preços em alta, um quadro ainda mais difícil de ser administrado por famílias vulneráveis que vivem nas maiores cidades brasileiras.

O IPCA, como diz sua própria sigla, é amplo. Para calculá-lo, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) pesquisa preços de diversos produtos e serviços, divididos em nove grupos – alimentação e bebidas, despesas pessoais, saúde e cuidados pessoais, vestuário, artigos de residência, comunicação, educação, habitação e transportes – em milhares de estabelecimentos nas principais regiões metropolitanas. Sua metodologia alcança famílias com rendimentos entre 1 e 40 salários mínimos, ou 90% da população que vive em áreas urbanas. O índice possui uma longa série histórica, e a incorporação de novos hábitos em seus cálculos – como transporte por aplicativos – revela um esforço para que a cesta de itens represente o consumo médio dos brasileiros de forma fidedigna. Ainda que muitas vezes a inflação pareça mais alta do que os números oficiais apontam, não pairam dúvidas sobre sua confiabilidade, o que é muito diferente de afirmar que seus impactos são iguais para todos.

Se há deflação para a classe média, a inflação permanece inabalável para os mais pobres. É o que aponta a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), que pesquisa o comportamento dos preços na cidade de São Paulo e pondera seus efeitos conforme a renda. De acordo com a Fipe, só houve deflação em julho, de 0,11%, para as famílias com renda mensal acima de R$ 9.696, o equivalente a mais de oito salários mínimos. Para quem recebe entre três e oito salários mínimos, a inflação subiu 0,17%, e para aqueles com renda entre um e três salários mínimos, a alta foi de 0,44%, o que permite inferir que o avanço dos preços deva ter sido ainda maior entre os que não conseguem auferir sequer um salário mínimo mensal.

Não é preciso ser um especialista para perceber as conexões entre o aumento da inflação e o crescimento da pobreza, mas há questões que o governo Bolsonaro prefere ignorar. A variação do preço dos combustíveis é indiferente para as famílias que não têm carro e só utilizam transporte público para se deslocar. O que essas famílias realmente percebem é que 63% dos itens pesquisados pelo IBGE – o equivalente a dois terços dos 377 que integram a cesta de produtos do IPCA – ficaram mais caros, entre eles o leite longa vida, que subiu 25,46%. Para elas, não há razão para comemorar a queda de 15,48% no preço da gasolina, até porque esse tipo de medida ainda tem o potencial de prejudicá-las de forma indireta. Como o barateamento dos combustíveis se deu em parte graças à redução forçada do ICMS, imposto que financia saúde e educação nos Estados, o resultado é a redução da oferta e da qualidade desses serviços públicos, fundamentais para os estratos mais pobres da população.

Com um orçamento composto apenas por gastos essenciais para garantir sua sobrevivência, o perfil de consumo dos mais carentes não reflete escolhas, mas apenas limitações e impossibilidades. Não é por outra razão que economistas reverberam a máxima segundo a qual a inflação é um imposto sobre os mais pobres – e é por isso que combatê-la deveria ser prioridade para qualquer governo. É nesse contexto que a incoerência da atuação do Executivo chama ainda mais a atenção. Ao torrar bilhões para agradar a caminhoneiros, taxistas e donos de automóveis, Bolsonaro retroalimenta a inflação que se jacta de enfrentar. Para quem tem fome, tudo o que seu governo tem a oferecer é um Auxílio Brasil corroído e um empréstimo consignado marcado por juros extorsivos.

A grosseria do ministro Guedes

O Estado de S. Paulo

Ao estilo do seu chefe, o ministro da Economia trata a França de modo insultuoso e prejudica interesses do País

Assustador para uns, incrível para outros, o fato foi testemunhado por dezenas de pessoas: o ministro da Economia do Brasil, Paulo Guedes, comparou um incêndio acidental, como o da catedral de Notre Dame, com a devastação intencional da Amazônia, promovida por criminosos, tolerada pelas autoridades e estimulada pela política antiambiental do presidente da República. Em discurso a empresários, em São Paulo, ele mencionou sua reação quando um ministro francês, segundo ele, acusou o governo brasileiro de queimar a floresta. Sua resposta: “E vocês, que não conseguem proteger um quarteirão, deixaram queimar Notre Dame?”.

Mas o despautério foi muito maior. Depois de colocar uma catedral no mesmo patamar da Floresta Amazônica, o próprio Guedes informou que disse ao tal ministro francês, a respeito da evolução dos vínculos comerciais do Brasil com a França e com a China, que a França está ficando irrelevante para o Brasil. Em seguida, fez uma ameaça, no dialeto característico do bolsonarismo: “É melhor vocês nos tratarem bem, porque, se não, vamos ligar o f...-se para vocês”.

Com essa fala, o ministro conseguiu cometer um erro de fato e, ao mesmo tempo, exibir uma espantosa incapacidade de avaliar os interesses do País. O erro de fato é evidente: a França é uma parceira muito importante, individualmente, como membro influente da União Europeia, como fonte de investimentos e como país de origem de vários grupos empresariais instalados no Brasil. O erro de avaliação é igualmente enorme. Este país, assim como a França, tem interesses econômicos e políticos de longo prazo, muito mais amplos que os desafios e oportunidades identificados nas condições imediatas de qualquer governo.

As autoridades francesas normalmente demonstram a percepção dessa diferença. Do lado brasileiro, a noção de interesses nacionais e de objetivos de Estado tem sido pouco visível nas ações e atitudes do presidente da República, pouco afeito a grandes questões, e de vários de seus ministros. Inicialmente moldada pelos padrões bolsonarianos, a atuação do Ministério das Relações Exteriores foi desastrosa durante boa parte do atual mandato presidencial. Melhorou, depois, com o retorno aos padrões do Itamaraty, mas continua limitada pelos valores e objetivos do presidente e de seus auxiliares.

O ministro da Economia, apesar de sua alta escolaridade, tem revelado, com frequência, notável afinidade com seu chefe. Tem-se mostrado avesso ao planejamento, confunde política industrial com mera redução do IPI, contenta-se com um crescimento econômico abaixo de medíocre, menospreza o Mercosul e desconhece os caminhos da integração na economia global. Pode-se especular se o seu trabalho seria melhor sob o comando de outro presidente. Mas essa especulação teria, agora, pouca importância prática. O ministro fala de um possível crescimento na faixa de 2% a 2,5% como se fosse um resultado notável e parece orgulhoso da herança legada ao próximo governo. Talvez esteja certo. Que se preocupem os cidadãos distantes da Praça dos Três Poderes.

Não tem cabimento um órgão público manter folha de pagamento secreta

O Globo

É fundamental apurar festival de desmandos na Fundação Ceperj, ligada ao governo fluminense

É preciso jogar luz sobre o que se passa na opaca Fundação Centro Estadual de Estatísticas, Pesquisas e Formação de Servidores Públicos do Rio (Ceperj), do governo fluminense. Ao contrário do que se espera de um órgão que trabalha com estatísticas da administração pública, o Ceperj está no centro de um escândalo pela falta de transparência e por ocultar dos contribuintes informações básicas sobre o destino dos recursos que por lá transitam.

Entre as muitas práticas estranhas, como revelou o portal UOL, está uma folha de pagamento secreta com pelo menos 20 mil cargos, algo sem cabimento na administração. Em resposta a uma ação ajuizada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, a 15ª Vara de Fazenda Pública determinou que Ceperj, Procuradoria-Geral do Estado e instituições bancárias apresentem todos os números da folha secreta, com os projetos a que cada beneficiário está vinculado. É o cúmulo que a Justiça tenha de cobrar do estado a divulgação de dados que ele tem obrigação de informar.

A cada dia, novas denúncias sobre as práticas ocultas do Ceperj revelam um cenário de farra com o dinheiro público. Na tal folha secreta, estão funcionários da Câmara Municipal do Rio, da Assembleia Legislativa fluminense e da Câmara dos Deputados, ligados a políticos de diferentes legendas. Eles acumulavam seus salários com os pagamentos do Ceperj, prática sabidamente irregular. A falta de controle é tamanha que a Câmara do Rio informou ao GLOBO que só tomara conhecimento do caso pela imprensa.

No festival de aberrações com o dinheiro do contribuinte, têm destaque os pagamentos em espécie na boca do caixa, expediente que dificulta qualquer tipo de controle e está em geral associado à lavagem de dinheiro. Apesar de ter informado que não é prática-padrão no governo, a Secretaria estadual de Fazenda permitiu que prosseguisse até 5 de novembro, seis dias depois do segundo turno da eleição.

Chama a atenção também o aumento no volume de recursos para o Ceperj em ano eleitoral. Os valores empenhados até julho (R$ 508,7 milhões) são 2.300% maiores que o gasto em todo o ano de 2020 (R$ 21,2 milhões). Em 2021, o empenho já havia subido para R$ 127,4 milhões. É preciso que se esclareça a súbita importância adquirida pela fundação com a proximidade das eleições.

É fundamental que se dê transparência imediata a todos os gastos, divulgando a quem se destinam e com que objetivo. Não é admissível que qualquer órgão da administração pública opere com folhas secretas, alimentadas por funcionários que sabe-se lá se existem. É preciso também que os desmandos sejam investigados para que se punam os responsáveis.

O governador Cláudio Castro, candidato à reeleição pelo PL, acabou de fechar um importante acordo de recuperação fiscal do Rio com a União, que traz um bem-vindo alívio às finanças estaduais. A contrapartida é a austeridade fiscal. O escândalo do Ceperj, com seus dutos secretos, emite um péssimo sinal a Brasília.

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