sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Reinaldo Azevedo – Cartas provam que país acordou

Folha de S. Paulo

Qualquer que seja o resultado de outubro, teremos de lutar pela democracia

leitura das cartas em defesa das liberdades, nesta quinta (11), marca um momento notável da história brasileira. Começamos, como país, a renascer de um desastre civilizatório. Brotam esperanças na terra crestada. E isso implica reconhecer que há destruição e cinzas.

Qualquer que seja o resultado da eleição de outubro, viveremos dias atribulados. Não haverá o descanso à sombra depois da batalha. Se Bolsonaro vencer, tentará, pela via legislativa, destruir uma democracia já lanhada, buscando emparedar o Supremo. Se o vitorioso for Lula, seus eventuais erros serão o menor dos nossos problemas. A extrema direita continuará a atacar as instituições.

Defendi, como sabem, desde a primeira hora, que os desiguais se juntassem em favor daquilo que lhes permite serem quem são: o regime de liberdades e de triunfo da lei sobre a vontade dos mais fortes. Sou signatário inicial da "Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado de Direito", que mereceu leitura solene na São Francisco e outras faculdades e universidades Brasil afora.

Cobrei aqui com dureza o capital: a ditadura lhes serve? E, por isso, saudei com entusiasmo o documento "Em Defesa da Democracia e da Justiça". O capital está lá. Mas também os trabalhadores, os cientistas, os defensores dos direitos humanos e os ambientalistas.

Na terra dos 700 mil mortos de doença, de susto, de bala, de vício, de desídia e delinquência praticadas por um governo fanaticamente criminoso, surge uma vereda. Parece ter acordado aquele bem imaterial, sempre intangível, mas que pode operar prodígios: a sociedade civil. Estávamos todos aterrados pela estupefação, pelo choque e pela incredulidade. Era como se nos disséssemos: "Não é possível! Isso não está acontecendo!" E, no entanto, estava e está.

Fanfarrão Minésio tripudia sobre corpos pretos com ainda mais armas. Ironiza as vítimas da Covid, escarnecendo de pessoas sufocadas por falta de oxigênio. Impregna a fé de milhões com obscurantismo e faz pouco caso da ciência. Condena, em suma, o país a morrer ensimesmado em suas "vastas solidões".

E na gente, como em "Rosa dos Ventos", de Chico Buarque, deu o hábito "De caminhar pelas trevas/ De murmurar entre as pregas/ De tirar leite das pedras/ De ver o tempo correr". Mas, quero crer, despertamos a tempo. Não na forma de um estrondo ou de uma "explosão atlântica" —porque os tempos não comportam mais disrupções, libertadoras ou não—, mas de suspiros organizados com calma, com método, com racionalidade.

Precisamos resgatar a ordem legal dos escombros a que a condenaram lavajatismos e outros salvacionismos da destruição. É a precondição para que se cumpra o desiderato da Constituição: a justiça, muito especialmente a social, sem a qual a outra se perde em beletrismo da igualdade.

Este escriba, diga-se, tem o espírito mais propenso à divergência do que à convergência. Amigos reclamam às vezes que costumo emprestar conteúdo a uma expressão meramente fática da linguagem, que serve apenas para manter aberto o canal de comunicação. Ou por outra: se falam comigo e pontuam a conversa com o "não é?", mesmo na forma contraída "né?", interrompo: "Não é!" Com alguma frequência, o interlocutor se surpreende: "Não é o quê?" Respondo: "Isso que você está dizendo... Eu não concordo". E ouço então: "É só modo de falar..." Mas eu presto atenção aos modos.

Ocorre que o meu rigor com as palavras que exercitam o direito de dissentir e a minha individualidade radical, das quais não abro mão por nada ou ninguém, têm um pressuposto: a vigência das regras do jogo que me permitem ser quem sou. Se estão sob ameaça, e estão, então sou todo mundo porque sou ninguém. Viro multidão e me junto a manifestos.

Não nos afastemos muito. Os dias vindouros terão de ser dedicados à defesa das conquistas civilizatórias e do estado de direito. Essa batalha está só no começo. Mesmo derrotadas, as forças que Bolsonaro representa não desistirão de golpear o país. A fera carnívora não se torna herbívora porque lhe escapou uma presa. Só espera uma nova oportunidade. Ou, para repetir frase famosa, "a cadela do fascismo está sempre no cio".

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

O pior é que o fascismo tem milhões de adeptos Brasil afora.