Valor Econômico
Polarização política engolfa maior religião
do Brasil
Independentemente do desfecho do segundo
turno da eleição presidencial, já se configuram algumas derrotas para além do
mundo partidário. Se não se pode considerar perdedora uma instituição milenar,
no mínimo é possível dizer que a Igreja Católica Apostólica Romana vive no
Brasil uma crise de grandes proporções.
De nenhuma maneira é comum - como tem sido
nos dois últimos anos e se intensificou este mês - as demonstrações de
desconforto da hierarquia do clero de Roma com o que ocorre dentro das
sacristias e dos templos.
De dom Odilo Scherer, de São Paulo; a dom Leonardo Steiner, de Manaus, passando por dom Orlando Brandes, de Aparecida; dom Alberto Taveira, de Belém; dom Vicente Ferreira, auxiliar de Belo Horizonte e dom Jaime Spengler, de Porto Alegre; foram muitos os prelados que divulgaram em entrevistas, sermões ou publicações em redes sociais a mesma mensagem: fere o cerne da igreja a quebra da liturgia e da hierarquia que parte dos fiéis promove, ao transpor para dentro do culto a polarização que perpassa a sociedade.
Eles não nominam, mas nem precisa: o
problema não é com a esquerda. Quando um vereador petista invadiu uma igreja em
Curitiba para promover um ato político, o cardeal da cidade, dom José Peruzzo,
não apoiou sua cassação. O problema é com o bolsonarismo, que encarnou dentro
do catolicismo a subversão na acepção do termo: uma revolta contra a ordem ou o
poder estabelecido, no caso o papa Francisco e seus representantes no Brasil.
A Igreja Católica parte de postulados que
se chocam com o debate político hoje, tanto no Brasil quanto no mundo. O
pensamento católico clássico é contrário às bandeiras identitárias que agradam
a esquerda, tanto que o conceito de ideologia de gênero foi concebido por Bento
XVI, e também se choca com o liberalismo econômico, que agrada a direita. Desde
Leão XIII se considera na igreja que direito à propriedade é relativizado,
precisa se subordinar à função social.
A doutrina católica representa portanto uma
espécie de conservadorismo de esquerda, algo que não se encaixa nem em um
extremo da polarização, nem no outro. Fica no meio do caminho, o que, em um
ambiente de guerra civil, significa bem na linha do fogo cruzado.
A polarização na sociedade não vai acabar,
alerta um religioso inequivocamente de esquerda, que é Frei Betto. Ele enxerga
neste clima um risco maior: o de confessionalização do Estado e partidarização
da religião. “Essa tensão vai permanecer, a polarização entrou até nas
famílias. A CNBB tem tido uma postura crítica à mistura entre religião e
eleição, mas é muito difícil”, comentou.
Para o frade dominicano, a esquerda tem
dificuldade histórica de dialogar com o segmento religioso, o que se agravou
nos últimos anos, com o advento da comunicação eletrônica. O clero contra
Bolsonaro está distante do universo do TikTok, do Instagram, dos vídeos com
audiência arrasa-quarteirão do YouTube. “Não conheço nenhum padre midiático a
favor do Lula”, afirmou Frei Betto.
Os “padres midiáticos”, uma categoria ao
qual Frei Betto, com sua coluna em jornal e 78 livros não se enquadra
propriamente, por ser analógico demais, tornam-se às vezes reféns de seus
rebanhos, e não seus pastores. Caso não se ajustem ao que se espera deles,
enfrentam a ira.
Um com coragem para enfrentar essa ira é o
Padre Zezinho, 81 anos, há décadas um sucesso na música religiosa, que anunciou
no dia 13 a suspensão de sua atuação nas redes sociais até o fim do segundo
turno, depois de ofensas “contra o papa, contra os bispos, contra mim, com
calúnias e palavras de baixo calão”, conforme escreveu no Facebook. Ele
esclarece na mensagem quais são as calúnias: “Mau padre, comunista e traidor de
Cristo”.
O ovo dessa serpente começou a ser chocado
nos anos 90, na visão de um ativista católico de linha conservadora, o
sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto. Trinta anos atrás a esquerda começou a
trocar as suas bandeiras depois da queda do muro de Berlim, afastando-se
gradualmente de uma visão anticapitalista para a defesa de uma sociedade mais
sensível a questões da pauta de costumes.
Dentro do mundo católico, a reação a isso
se traduziu em um crescimento do reacionarismo que, paulatinamente, foi
transpondo os muros dos guetos em que estava confinado desde o Concílio
Vaticano II.
Borba aponta que custou-se a perceber, no
catolicismo, que havia esta contaminação entre ser conservador e ser reacionário,
duas coisas que ele afirma serem bem diferentes.
O resultado, no Brasil, é que quem lidera a
batalha no catolicismo contra a liberação do aborto hoje não se veste de
púrpura e nem usa solidéu ou mitra. É gente capaz de interromper uma celebração
da eucaristia para expor intolerância e uma opção política extremista. Há uma
perda de liderança da hierarquia, se esvai pelos dedos a capacidade de
liderança dos guias religiosos em relação a seus fiéis. “A Igreja Católica sai
dessa eleição mais fragilizada e incerta da sua identidade”, opina Borba.
Por fim, essa semana também demonstra uma
rendição do lado da esquerda. Em termos eleitorais, o catolicismo no Brasil é
um ponto neutro. Não há um voto católico direcionado a A ou B, como há um voto
evangélico. Normalmente o padrão de opção política dos católicos registrado nas
pesquisas é semelhante ao padrão de voto nacional e essa é a principal razão
pela qual em processos eleitorais se presta mais atenção aos evangélicos.
Esse processo culmina na carta assinada por
Lula na quarta-feira. Se em 2002 a preocupação da esquerda era tranquilizar o
mercado agora trata-se de acenar para os pastores. Quando um candidato com 76
anos de idade e 40 anos de estrada em disputas eleitorais precisa jurar que
honrará “a dupla condição de cidadão e cristão”, fica claro que já há um
vencedor nessa contenda. A esquerda há 20 anos abjurou de uma guinada radical
da economia. Agora sinaliza reverenciar uma visão de mundo tradicional na
sociedade brasileira. Consolida-se uma hegemonia.
Um comentário:
Os padres são discretos demais,enquanto os pastores... Fábio de Melo apenas insinuou...
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