terça-feira, 18 de outubro de 2022

Ligia Bahia* - Identidade médica e saúde da população

O Globo

Médicos confundidos com um regime, um governo, entraram para a História como carrascos

O dia 18 de outubro costumava ser uma data protocolar. Por décadas, mensagens entre colegas de profissão, poucos anúncios na imprensa parabenizando médicos por sua dedicação e eventos mais para festivos de entidades de representação da categoria compuseram um repertório comemorativo repetitivo, mas simpático e inclusivo. Neste ano, as divergências político-eleitorais engoliram a tradição. O princípio da profissão — definido por suas competências e também interdições de práticas, um espaço comum para o exercício de atividades — passa por uma reviravolta. O que era partilhado em função do que se faz, como e onde se trabalha está sendo substituído por um fanatismo político que rejeita diferentes e diferenças.

Faculdades públicas, acervos comuns e textos científicos — disponíveis para qualquer médico — subverteram antigas hierarquias e se tornaram núcleo de uma comunidade profissional mais democrática. Um árduo processo, atravessado por ilusões e desilusões. Divergências entre médicos acompanham a constituição das alternativas para projetos nacionais. Não fossem as polêmicas entre Afrânio Peixoto e Oswaldo Cruz sobre a compreensão dos “nossos males”, possivelmente teríamos demorado ainda mais tempo para a transição da medicina bacharelesca para a científica.

Médicos não são iguais, dividem-se em especialidades e se inserem em diversos e múltiplos espaços em suas interações com a sociedade. Em geral, enfrentam uma jornada de trabalho longa, exigente de desvelo e prudência permanentes. Aprendem a desenvolver empatia para lidar no dia a dia com pacientes e necessidades de saúde individualizadas e a contextualizar e respeitar singularidades. Estar perto do sofrimento, da dor e também da alegria da recuperação da saúde marcou em todas as gerações de médicos brasileiros o compromisso de aproximação com os mais pobres.

A atual fusão entre parte de médicos no Brasil com a crítica intolerante à “ordem”, ao moderno, é um corpo estranho à medicina. Contestar a alegada arrogância do pensamento científico e a proclamação do fim das utopias igualitárias é admissível, merece reflexão. Mas a convocação pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) de um Dia do Médico pró-Bolsonaro rompe com o sentido único de ser médico. Médicos confundidos com um regime, um governo, entraram para a História como carrascos. Para restabelecer as condições de inteligibilidade do debate, é essencial dar visibilidade aos modos de fazer e pensar medicina e saúde e seus possíveis modos de transformação. Os atuais conflitos que separam os médicos não se resumem à cloroquina; estão em jogo expectativas de atuação e satisfação com o trabalho, obtenção de prestígio.

Criaram uma quimera com corpo de empreendedorismo, autonomia, livre-arbítrio e membros reconstituídos pelo fim do reinado dos professores e pesquisadores que emitem protocolos de condutas e normas sanitárias. A mistificação da medicina é uma operação de subtração. As possibilidades idealizadas de ser médico resultam da retirada dos pacientes da equação. Asas às fantasias de vencer por mérito próprio abstraindo as condições concretas de vida no Brasil oferecem como vantagem adicional a isenção da tarefa de equacionar medicina e saúde. Para afastar o fantasma do engajamento ideológico e prevenir práticas anticientíficas, é preciso fincar os dois pés na realidade e construir pontes que permitam resgatar a identidade médica necessariamente vinculada com a saúde da população.

*Ligia Bahia é médica e professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro

Um comentário:

Anônimo disse...

Este atual CFM é cúmplice de Bolsonaro na pandemia, é um pequeno grupo de médicos politiqueiros que não aceitaram as posições dos médicos especialistas e preferiram apoiar as posições bolsonaristas de minimizar os riscos causados pelo novo coronavírus, apoiando a prescrição de remédios ineficazes sob a argumentação da autonomia médica. Aceitaram seu usados pelo GENOCIDA e se beneficiam da proximidade com os poderosos do governo federal. Médico também pode ser canalha, e estes do CFM exageraram na sua dose de canalhice! Bando de incompetentes!