O Globo
Médicos confundidos com um regime, um governo,
entraram para a História como carrascos
O dia 18 de outubro costumava ser uma data
protocolar. Por décadas, mensagens entre colegas de profissão, poucos anúncios
na imprensa parabenizando médicos por sua dedicação e eventos mais para
festivos de entidades de representação da categoria compuseram um repertório
comemorativo repetitivo, mas simpático e inclusivo. Neste ano, as divergências
político-eleitorais engoliram a tradição. O princípio da profissão — definido
por suas competências e também interdições de práticas, um espaço comum para o
exercício de atividades — passa por uma reviravolta. O que era partilhado em
função do que se faz, como e onde se trabalha está sendo substituído por um
fanatismo político que rejeita diferentes e diferenças.
Faculdades públicas, acervos comuns e textos científicos — disponíveis para qualquer médico — subverteram antigas hierarquias e se tornaram núcleo de uma comunidade profissional mais democrática. Um árduo processo, atravessado por ilusões e desilusões. Divergências entre médicos acompanham a constituição das alternativas para projetos nacionais. Não fossem as polêmicas entre Afrânio Peixoto e Oswaldo Cruz sobre a compreensão dos “nossos males”, possivelmente teríamos demorado ainda mais tempo para a transição da medicina bacharelesca para a científica.
Médicos não são iguais, dividem-se em
especialidades e se inserem em diversos e múltiplos espaços em suas interações
com a sociedade. Em geral, enfrentam uma jornada de trabalho longa, exigente de
desvelo e prudência permanentes. Aprendem a desenvolver empatia para lidar no
dia a dia com pacientes e necessidades de saúde individualizadas e a
contextualizar e respeitar singularidades. Estar perto do sofrimento, da dor e
também da alegria da recuperação da saúde marcou em todas as gerações de
médicos brasileiros o compromisso de aproximação com os mais pobres.
A atual fusão entre parte de médicos no
Brasil com a crítica intolerante à “ordem”, ao moderno, é um corpo estranho à
medicina. Contestar a alegada arrogância do pensamento científico e a
proclamação do fim das utopias igualitárias é admissível, merece reflexão. Mas
a convocação pelo Conselho Federal de Medicina (CFM)
de um Dia do Médico pró-Bolsonaro rompe com o sentido único de ser médico.
Médicos confundidos com um regime, um governo, entraram para a História como
carrascos. Para restabelecer as condições de inteligibilidade do debate, é
essencial dar visibilidade aos modos de fazer e pensar medicina e saúde e seus
possíveis modos de transformação. Os atuais conflitos que separam os médicos
não se resumem à cloroquina; estão em jogo expectativas de atuação e satisfação
com o trabalho, obtenção de prestígio.
Criaram uma quimera com corpo de
empreendedorismo, autonomia, livre-arbítrio e membros reconstituídos pelo fim
do reinado dos professores e pesquisadores que emitem protocolos de condutas e
normas sanitárias. A mistificação da medicina é uma operação de subtração. As
possibilidades idealizadas de ser médico resultam da retirada dos pacientes da
equação. Asas às fantasias de vencer por mérito próprio abstraindo as condições
concretas de vida no Brasil oferecem como vantagem adicional a isenção da
tarefa de equacionar medicina e saúde. Para afastar o fantasma do engajamento ideológico
e prevenir práticas anticientíficas, é preciso fincar os dois pés na realidade
e construir pontes que permitam resgatar a identidade médica necessariamente
vinculada com a saúde da população.
*Ligia Bahia é médica e professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro
Um comentário:
Este atual CFM é cúmplice de Bolsonaro na pandemia, é um pequeno grupo de médicos politiqueiros que não aceitaram as posições dos médicos especialistas e preferiram apoiar as posições bolsonaristas de minimizar os riscos causados pelo novo coronavírus, apoiando a prescrição de remédios ineficazes sob a argumentação da autonomia médica. Aceitaram seu usados pelo GENOCIDA e se beneficiam da proximidade com os poderosos do governo federal. Médico também pode ser canalha, e estes do CFM exageraram na sua dose de canalhice! Bando de incompetentes!
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