Ameaça autocrática
Folha de S. Paulo
Concentrar poder é o verdadeiro programa de
governo de Jair Bolsonaro
Nunca foi tão avassaladora a maioria de
brasileiros que consideram a democracia a melhor forma de governo, de 79%
segundo o Datafolha. Nunca na Nova República um presidente ameaçou a
estabilidade constitucional como o atual mandatário.
Jair Bolsonaro (PL) valeu-se do cargo para
constranger e ameaçar Poderes independentes, insultar autoridades e propagar
uma farsa contra
o sistema eleitoral diante de brasileiros e estrangeiros.
Promoveu
tratamentos ineficazes de uma doença letal, retardou a
aquisição de vacinas, debochou de famílias enlutadas, protegeu os filhos de
investigações e atiçou militares contra o poder civil.
Conclamou arruaceiros a cercarem as seções
de votação no próximo domingo (30).
A agenda que deveria ser a do futuro
—educação, saúde, infraestrutura, inovação, redução da pobreza e das
desigualdades— ocupou-se de temas que já deveriam estar superados. A sociedade
e as instituições tiveram de gastar energia preciosa para proteger regras
básicas da convivência democrática.
Agora, como nos outros oito pleitos
presidenciais realizados desde 1989, os votos serão dados livremente, a
apuração revelará a vontade majoritária, e o eleito tomará posse e governará
com as prerrogativas e as obrigações de chefe de Estado.
Esperar que o próprio candidato à
recondução tenha compreendido e acatado os limites do mandato seria pouco
realista diante do que se vê desde 2019.
É melhor trabalhar com a hipótese corroborada pela experiência —tornar-se autocrata é o verdadeiro programa de governo de Jair Bolsonaro para um eventual segundo mandato.
A ameaça do arbítrio é nova apenas em
aspectos acessórios, como no uso intensivo de redes sociais para disseminar
ignorância, culto ao chefe e ordens de ataque. No mais, obedece ao roteiro de
conhecidos movimentos subversivos da história.
Não é necessário um golpe militar para
liquidar o Estado democrático de Direito. Se não for tenazmente neutralizada, a
corrosão cesarista com o tempo dissolve as cartilagens que articulam as
liberdades civis e a competição política.
As instituições republicanas deram seguidas
demonstrações de solidez ao impedir a deriva autoritária nos últimos quatro
anos. Estarão prontas, haja vista a inequívoca convicção democrática da
população, para um novo período de bloqueio das investidas tirânicas caso a
maioria do eleitorado brasileiro soberanamente decida pela reeleição.
Com quem andas
Folha de S. Paulo
É necessário colocar sob escrutínio relação
de Lula e de Bolsonaro com ditaduras
Em 4 de março de 1975, o lendário chanceler
Azeredo da Silveira definiu, em um discurso na Escola Superior de Guerra, os
fundamentos de política externa que norteiam a ação do Itamaraty desde então.
Para o diplomata, ela seria
"pragmática porque se opõe ao apriorismo e ao idealismo verbal", e
"funda-se na apuração realista dos fatos e avaliação ponderada das
consequências", visando "à eficiência material e não à coerência
formal".
O mundo evoluiu e, se o arranjo dualista da
Guerra Fria foi substituído pela globalização e um certo vale-tudo entre
nações, também houve a emergência de agendas antes relegadas ao segundo plano,
como a defesa de direitos humanos.
O proverbial "diga-me com quem
andas" passou a ter um peso maior, ainda que a realpolitik seja a norma.
Em qualquer contexto, cumpre avaliar as relações exteriores dos dois atuais
candidatos ao Planalto, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o incumbente, Jair
Bolsonaro (PL).
O petista tem
longo histórico de proximidade ideológica com ditadores e autocratas à
esquerda, herança formativa de seu partido.
A incapacidade de criticar o regime de
Cuba, seus laços com o chavismo e com ditadores de outrora —como o líbio
Muammar Gaddafi ou o angolano José Eduardo dos Santos— são notáveis. Isso para
não citar relações com Teodoro Obiang (Guiné Equatorial), o mais longevo
autocrata em atividade.
No mundo em que uma empresa pode ficar sem
acesso a fundos internacionais se não cumprir os ditames do ESG (ambiente,
sustentabilidade e governança, na sigla inglesa), países devem se precaver.
Já Bolsonaro começa
sua lista de admiração ditatorial em casa, com o saudosismo dedicado ao regime
fardado de 1964. No cargo, para cada crítica à Venezuela, veio um elogio ao
Chile de Augusto Pinochet.
Chama o húngaro Viktor Orbán, que fez seu
país pária na União Europeia, de irmão. Estabelece laços com as franjas
extremistas da direita global, que orbitam o ex-presidente americano Donald
Trump.
Buscou, inclusive, submeter o Itamaraty a
um alinhamento inaudito com Washington e fustigou a China comunista tão
cortejada por Lula no poder, só para depois se acomodar à realidade comercial.
Por fim, coleciona afinidades com
autocratas como Umaro Sissoco Embaló (Guiné-Bissau) e Nayib Bukele (El
Salvador).
Tanto Lula quanto Bolsonaro concordam na
neutralidade crítica em relação à guerra da autocracia russa na Ucrânia, de
resto consonantes com a tradição brasileira.
Mas a crescente divisão entre o Ocidente e
o bloco liderado por Pequim, com Moscou de parceira, elevará o grau de
escrutínio e a pressão sobre líderes acerca das companhias que escolhem.
Guerra dos chips
Folha de S. Paulo
Embate geopolítico entre EUA e China ganha
novo patamar com medida americana
Em nova escalada do confronto geopolítico
com a China, o governo dos Estados Unidos impôs
restrições sem precedentes para acesso à tecnologia americana
na área de semicondutores —considerada estratégica em uma ampla gama de
aplicações econômicas e militares.
A decisão abre uma nova etapa no embate.
Pela primeira vez, as restrições não atingem apenas itens com potencial uso
bélico. Na prática, qualquer empresa que utilizar tecnologia listada na
regulamentação precisará de licença especial para operar na China.
A primeira restrição, mais convencional, se
dá no fornecimento
de chips na fronteira tecnológica, que tem uso imediato em
supercomputadores e na inteligência artificial. Essa frente é a base para o
desenvolvimento de armas autônomas, mais baratas, ágeis e com potencial de
alterar a correlação de forças entre as duas potências.
Há também vetos ao fornecimento de
softwares e máquinas essenciais para produção e controle de semicondutores, o
que visa dificultar o desenvolvimento da base produtiva do gigante asiático.
Por fim, funcionários de empresas, cidadãos
americanos e detentores do direito à residência nos EUA (inclusive milhares de
chineses) estão impedidos de prestar serviços essenciais na manutenção e
operação dessas ferramentas.
Além disso, quaisquer empresas, inclusive
não americanas, envolvidas no fornecimento de chips sofisticados à China
poderão sofrer as mesmas restrições.
Tais ações complementam a lei recentemente
aprovada no Congresso americano que confere US$ 52 bilhões em subsídios para
pesquisa e nacionalização de parcelas mais amplas da cadeia produtiva do setor,
hoje dispersa no mundo, em especial na Ásia.
Uma resposta chinesa será inevitável. O
país vem investindo de forma robusta em nascentes empresas locais e pretende
dominar a inteligência artificial até 2030. Agora, porém, tal objetivo fica
comprometido, dada a dependência de tecnologia ocidental.
Embora ainda não haja clareza, a reação
poderá envolver controles de exportações de minérios raros, componentes químicos
e farmacêuticos e outras áreas com posição dominante da China.
O consenso político nos EUA é de contenção às ambições chinesas e por forçar agentes econômicos a escolher um lado. A aposta, perigosa, prenuncia consequências significativas que atingirão a todos.
O Globo
Omissão revela que, desde o início, a
intenção não era melhorar sistema eleitoral, mas dar pretexto a confusão
Sob pena de as Forças Armadas perderem
ainda mais credibilidade diante da opinião pública, o Ministério da Defesa tem
o dever de apresentar os resultados da fiscalização que promoveu no primeiro
turno das eleições presidenciais. Cada dia de omissão aumentará a certeza de
que o ministro Paulo Sérgio Nogueira se submete às estratégias políticas de
Jair Bolsonaro.
Como outras instituições nacionais e internacionais, as Forças Armadas fiscalizaram o pleito de 2 de outubro. Acompanharam os testes de integridade das urnas eletrônicas e verificaram a transmissão de votos comparando uma amostra dos boletins com os dados computados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Depois do anúncio dos resultados oficiais, Organização dos Estados Americanos (OEA) e União Interamericana dos Órgãos Eleitorais (Uniore) atestaram a integridade e a confiabilidade do sistema eleitoral — ambas também fiscalizarão o pleito do dia 30. Do Ministério da Defesa, que tanta celeuma inútil provocara em torno do assunto antes da votação, estranhamente nada se ouviu.
A explicação mais plausível para o silêncio
é que a fiscalização não encontrou nenhuma falha significativa, como vários
relatos extraoficiais confirmam — e que Bolsonaro e seus assessores, com a
conivência de Nogueira, decidiram sonegar a informação da população. Depois de
passar anos lançando dúvidas, sem prova alguma, sobre as urnas eletrônicas,
Bolsonaro não quis ser desmentido pelos militares e preferiu guardar um trunfo
na manga para depois do segundo turno.
No início da semana, o presidente do TSE,
Alexandre de Moraes, determinou que o Ministério da Defesa entregasse em 48
horas cópias existentes sobre a “auditoria” do processo eleitoral. Em seu
despacho, afirmou que “as notícias de realização de auditoria das urnas pelas
Forças Armadas, mediante entrega de relatório ao candidato à reeleição, parecem
demonstrar a intenção de satisfazer a vontade eleitoral manifestada pelo chefe
do Executivo, podendo caracterizar, em tese, desvio de finalidade e abuso de
poder”.
No dia seguinte, o Ministério da Defesa
divulgou nota afirmando que só entregará relatório ao fim do segundo turno.
Numa afronta ao bom senso, o texto afirma não haver relatório algum sobre o que
aconteceu no primeiro turno, como se as informações coletadas estivessem
esquecidas nalgum computador da Esplanada à espera de análise. Lançando mão de
um argumento falacioso, a nota ainda diz que “a emissão de um relatório
parcial, baseado em fragmentos de informação, pode resultar-se (sic)
inconsistente com as conclusões finais do trabalho, razão pela qual não foi
emitido”. Bobagem.
Nas eleições em dois turnos, relatórios
preliminares servem para permitir sanar rapidamente problemas eventualmente
encontrados. Foi por isso que OEA e demais observadores emitiram comunicados
imediatos. O comportamento inexplicável do Ministério da Defesa é contrário à
tradição das Forças Armadas desde a redemocratização na década de 1980. O
silêncio — audível — revela que, desde o início, o interesse não era contribuir
para aperfeiçoar o processo eleitoral, mas oferecer pretextos para que
Bolsonaro possa criar confusão em caso de derrota. Nogueira precisa ter em
mente que as Forças Armadas são uma instituição do Estado brasileiro, não um
apêndice de partido político ou líder populista.
Filas para receber Auxílio Brasil são
desrespeito com população carente
O Globo
Dificuldade de cadastramento revela
despreparo e improviso do governo na implantação do novo programa social
Famílias que dependem do Auxílio Brasil têm
sido obrigadas a pernoitar nas ruas, às vezes com filhos pequenos, pela
incapacidade do governo federal e das prefeituras de organizar as inscrições no
Cadastro Único (CadÚnico). Na semana passada, diante das cenas de desumanidade
que se espalharam por extensas filas pelo país, o governo decidiu prorrogar por
mais 30 dias o prazo para a inscrição e atualização de informações no CadÚnico,
única forma de a população de baixa renda ter acesso à ajuda do governo
federal. Foi a segunda prorrogação nos prazos. Em várias cidades, porém, as
filas continuaram extensas.
Os gestores do Ministério da Cidadania
responsáveis pelo CadÚnico e as prefeituras já deveriam ter percebido que
precisam encontrar outras formas de atender o público. A burocracia estatal
poderia, no mínimo, estabelecer critérios de prioridade no atendimento, além de
abrir novos postos capazes de dar conta da demanda represada. Mas o ministério
continua apenas a estender prazos sem buscar alternativas eficazes para
organizar a atualização do CadÚnico.
Crítico do Bolsa Família nos tempos em que
era deputado federal, o presidente Jair Bolsonaro se transformou num defensor
eloquente dos programas de assistência, ao receber um impulso em sua
popularidade com o Auxílio Emergencial distribuído durante a pandemia. A
política assistencialista tornou-se seu principal trunfo na disputa com o
petista Luiz Inácio Lula da Silva pelo eleitorado nas faixas de renda mais
baixa da população. Agora, a dias do segundo turno, famílias padecem nas filas,
tamanho o grau de improviso e desorganização com que o governo se pôs a
enfrentar o desafio de ampliar os beneficiários.
Economistas já vinham alertando sobre a
desatualização do CadÚnico, principal dificuldade para pôr em prática qualquer
atendimento emergencial à população. O governo tinha até a semana passada a
informação de que 263 mil famílias beneficiárias do Auxílio Brasil estavam com
cadastros desatualizados, sob risco de suspensão ou cancelamento do benefício.
Apesar da queda no desemprego para 8,9%, menor taxa em sete anos, ainda há 9,7 milhões de desocupados, muitos deles candidatos a receber o benefício assistencial que penam nas filas para se inscrever ou para atualizar sua ficha cadastral. Se nada for feito para organizar a corrida da população para os balcões do CadÚnico, incluindo a ampliação da rede de atendimento às famílias, as cenas degradantes de mães, pais e filhos dormindo nas ruas continuarão. É um desrespeito do governo federal à população carente, com a conivência das prefeituras.
A mensagem política da classe C
O Estado de S. Paulo
Já passou da hora de políticos moderados compreenderem a classe média e trabalharem por suas aspirações: menos interferência do Estado, mais valorização da família
O primeiro turno das eleições revelou uma
desidratação das alternativas de centro-esquerda e centro-direita. Os candidatos
da “terceira via”, por exemplo, não somaram dois dígitos do porcentual de votos
válidos. Ao mesmo tempo, como resumiu o colunista do Estadão William
Waack, as urnas mostraram que Lula da Silva é maior que a esquerda e Jair
Bolsonaro é menor que a direita. Lula conquistou mais de 57 milhões de votos
(48,4% dos votos válidos), 6 milhões a mais do que Bolsonaro (43,2%). Mas nas
eleições parlamentares o avanço de nomes da esquerda foi menor que a vantagem
galgada por Lula, enquanto a projeção de candidatos à direita foi maior que os
votos confiados a Bolsonaro.
Parte da explicação para esses descompassos
está na classe C, a fatia socioeconômica que compreende famílias com renda
mensal de R$ 1 mil a R$ 8 mil – cerca de 100 milhões de pessoas, 55% da população.
Especialistas ouvidos pelo Estadão afirmam que ela tem um perfil
heterogêneo e difícil de ser captado por análises, mas, em geral, resumiram seu
sentimento em relação ao poder público como um misto de desalento e
desconfiança. Desalento pela precariedade de serviços básicos, como saúde,
educação e segurança, e desconfiança em relação à captura do Estado por
interesses patrimonialistas e à sua intromissão na vida das pessoas.
O professor da FGV Lauro Gonzalez aponta
“um caldo de ressentimento em um grupo que está no limbo”, nem tão pobre para
entrar em programas sociais, mas que também não ascendeu mesmo com mais
escolaridade que seus pais. Além disso, “uma parte da narrativa desses
segmentos é de natureza dos costumes, há uma recuperação de um sentimento
conservador, colado na fé religiosa”, disse o cientista político José Álvaro
Moisés. De resto, “o discurso de que o Estado não funciona e é corrupto é muito
aderente”, observou o antropólogo Maurício de Almeida Prado. “Mesmo que
Bolsonaro não tenha conseguido fazer ações nesse sentido, o ‘não fique em
casa’, o ‘Estado me atrapalha’, menos coletivo e mais individual, é uma visão
que colou nele e tem respaldo nesse grupo.”
O próprio PT identificou esse imaginário em
uma pesquisa de 2017 da Fundação Perseu Abramo com eleitores de até 5 salários
mínimos. Contrariando os ideólogos do partido, ela aponta que “o principal
confronto existente na sociedade não é entre ricos e pobres, entre capital e
trabalho, entre corporações e trabalhadores”, e sim “entre Estado e cidadãos,
entre a sociedade e seus governantes”. Para os entrevistados, “todos são
vítimas do Estado que cobra impostos excessivos, impõe entraves burocráticos,
gerencia mal o crescimento econômico e acaba por limitar ou sufocar atividades
das empresas”. A maioria se disse favorável a “uma atuação mais integrada entre
Poder Público e iniciativa privada em favor da coletividade”. São eleitores que
valorizam a meritocracia e entendem que a crise ética da sociedade resulta
menos de vícios “estruturais” do que de desvios individuais, a serem sanados,
antes de tudo, pela família.
Mas o partido que se arroga como a
vanguarda da História parece não ter aprendido a moral da história. A única
coisa nova que a campanha petista acrescentou ao seu “desenvolvimentismo” para
vencer a “luta de classes” foram as pautas identitárias, que dividem a
sociedade em raça, gênero ou sexualidade.
Assim, se a votação expressiva em
candidatos conservadores ao Congresso sugere uma rejeição ao progressismo
desenvolvimentista e identitário, a vantagem de Lula nas urnas e intenções de
voto sugere uma resistência ao reacionarismo truculento de Bolsonaro. Se há um
descompasso entre uma esquerda caquética com grandes chances de assumir o Poder
Executivo e uma direita radical que se robusteceu no Legislativo, é pela
falência de um centro democrático moderado em representar uma faixa da
população menos preocupada com dogmas “progressistas” e “conservadores” do que
com um projeto político pragmático que racionalize o Estado, garanta a qualidade
dos serviços públicos, estimule a iniciativa privada, premie os melhores e mais
esforçados e valorize a família.
Orçamento secreto, o ‘novo normal’
O Estado de S. Paulo
Ante a ofensiva parlamentar para eternizar a aberração, tudo indica que caberá ao STF restaurar a moralidade das relações entre Poderes, devolvendo controle do Orçamento ao governo
Triunfantes após o resultado do primeiro
turno das eleições, os partidos que integram o Centrão têm deixado claro não
ter intenção de dar fim ao orçamento secreto. Formado pelo PL, PP, União Brasil
e Republicanos, o grupo elegeu 246 deputados federais, quase metade da Câmara
Federal, e terá papel fundamental na aprovação de qualquer projeto que vier a
ser proposto pelo presidente eleito em 30 de outubro. Antes mesmo dessa
definição crucial para o futuro do País, suas lideranças têm sinalizado que não
aceitarão a retomada do controle do Orçamento pelo governo federal. É uma
tentativa de estabelecer um “novo normal” entre as relações entre Legislativo e
Executivo que, por óbvio, não pode ser considerado normal.
Ao Estadão, o presidente do
Republicanos, Marcos Pereira (SP), disse não ver possibilidade de que a nova
legislatura aceite mudanças no mecanismo do orçamento secreto, que garantiu
sustentação política a Jair Bolsonaro. O presidente da Câmara, Arthur Lira
(PP-AL), argumentou que as emendas de relator seriam uma maneira de impedir o
retorno do mensalão e do “toma lá dá cá” dos governos petistas, como se os
esquemas fossem muito diferentes e seu objetivo final não fosse essencialmente
o mesmo.
Símbolo do clientelismo e da falta de
transparência, as emendas de relator são uma excrescência na qual imperam o
descontrole do gasto, a ausência de critérios técnicos e racionais e a captura
de recursos públicos por interesses privados. Recursos bilionários têm sido
manejados sem que o destino do dinheiro seja esclarecido e sem que os autores
das indicações sejam identificados, impedindo uma avaliação concreta sobre o
trabalho do parlamentar e a pertinência da despesa por ele proposta.
Ainda assim, no debate presidencial da
Band, ao serem questionados sobre o que fariam para aprovar reformas sem
comprar apoio legislativo, Bolsonaro e Lula deram respostas evasivas sobre o
fim do orçamento secreto. Bolsonaro tenta lavar as mãos, dizendo que vetou a
prática, mas a verdade é que seu governo encaminhou sua própria proposta sobre
o tema e nunca se mobilizou de fato para derrubar essa aberração evidentemente
inconstitucional. Lula, por sua vez, disse que tentaria confrontar a prática
com a implementação de um “orçamento participativo” – antigo programa petista
de “democracia direta” na elaboração orçamentária cuja inviabilidade é atestada
pelo fato de que não foi implantado quando o PT governou o País.
Mesmo que seja derrotado na disputa
presidencial, Bolsonaro deixa como legado um Orçamento ainda mais degradado e
sobre o qual o Executivo já não tem mais poder. Se já não tinha autoridade para
remanejar gastos obrigatórios que consomem 93% da peça orçamentária, o governo
perdeu todo o controle sobre a minoritária parcela de gastos discricionários,
hoje capturada por emendas paroquiais do Centrão. Para o ano de 2023, foram
reservados R$ 19,4 bilhões para esses gastos, uma decisão que não poupou nem
mesmo as verbas do Farmácia Popular.
Ao contrário do que a classe política tem
sinalizado, o orçamento secreto não é algo inerente às relações entre os
Poderes. Nesse sentido, ganha ainda mais relevância o julgamento das ações que
questionam a constitucionalidade das emendas de relator pelo Supremo Tribunal
Federal (STF). Sob relatoria da ministra Rosa Weber, os processos devem ser
pautados ainda neste ano, após a eleição. O julgamento pode representar um
marco no resgate dos princípios da publicidade e da impessoalidade dos atos da
administração pública.
No ambiente político conturbado
proporcionado por quatro anos de bolsonarismo, tudo indica que caberá ao
Supremo cumprir o papel de restaurar a normalidade e a moralidade das relações
entre os Poderes, devolvendo o Orçamento ao Executivo e lembrando ao
Legislativo que sua função é fiscalizar o uso desses recursos públicos. O
Centrão pode até tentar reagir a esse movimento, mas não há Proposta de Emenda
à Constituição capaz de dar caráter formal à transgressão de princípios
constitucionais.
A sustentabilidade da saúde no País
O Estado de S. Paulo
‘Summit Saúde’ do ‘Estadão’ mostra que o Brasil gasta pouco e mal com saúde, mas as soluções estão à mão
A pandemia submeteu o sistema de saúde
brasileiro a um tremendo teste de estresse e sobreviveu, sendo festejado como
fundamental para o País. Ainda assim, esse formidável sistema mostrou suas
imensas fragilidades e precisa se fortalecer: o coronavírus está se dissipando,
mas, com suas sequelas econômicas e a demanda por procedimentos eletivos
represados, a pressão continua. Some-se a isso o inexorável envelhecimento da
população.
O desafio de um sistema sustentável foi
abordado no Summit Saúde do Estadão por diversos ângulos.
Um deles é o financiamento. Enquanto a média dos países da OCDE gasta US$ 4 mil
per capita com saúde, o Brasil gasta US$ 1,2 mil. Para piorar, a maior parte
dos gastos vem de recursos privados. Os EUA, por exemplo, gastam US$ 10 mil per
capita, 16,9% do PIB, sendo 14% gastos públicos. O Brasil gasta 11,2% do PIB e
só 4% são públicos, cerca de metade do observado no Canadá, Itália, França ou
Alemanha.
A defasagem dos repasses públicos aos
hospitais filantrópicos que prestam serviços ao SUS está asfixiando o sistema.
Além disso, o Banco Mundial projeta que a conta do SUS chegará a R$ 700 bilhões
em 2030, mais que o dobro do que se gasta hoje. Novos recursos poderiam ser
gerados sem comprometer o equilíbrio fiscal, por exemplo, ajustando regras de
indexação para programas sociais ou salários do funcionalismo, ou reduzindo a
isenção tributária altamente regressiva em gastos com o sistema privado.
O mesmo Banco Mundial estima que 30% dos
recursos federais são mal empregados. Implementar avaliação de resultados com
indicadores de produção, finanças e qualidade é a chave para otimizar gastos.
Outros pontos importantes são o fortalecimento da atenção primária; melhor
coordenação entre o SUS e o sistema privado; e mais integração interfederativa,
com foco na regionalização dos serviços para desafogar os pequenos municípios.
Tecnologia é crucial. Cada vez mais os
serviços se concentrarão não só em tratar as pessoas, mas em acompanhá-las e
auxiliá-las a prevenir doenças. “Se você monitora o paciente cardíaco com
dados”, exemplificou Sidney Klajner, presidente do Hospital Albert Einstein,
“você sabe, através de big data, se a situação está melhorando ou piorando e
pode agir preventivamente.”
No entanto, também aqui há defasagem no
sistema nacional, que até conta com uma razoável estrutura de dados, mas está
atrás dos países da OCDE em disponibilização, governança e integração. “O que
existe hoje são ilhas de dados. Cada instituição tem os seus”, disse Iomani
Engelmann, da plataforma de soluções hospitalares Pixeon. “Isso teria de ser
partilhado, para que o médico possa ver o histórico clínico completo e assim
ter uma conduta clínica mais adequada.”
O Summit mostrou que a
sustentabilidade do sistema de saúde depende de um tripé de medidas
complementares: mais recursos públicos serão indispensáveis, mas, desde já, é
preciso melhor gestão para otimizar os recursos disponíveis e, com isso, abrir
espaço para mais investimentos em tecnologia.
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