Folha de S. Paulo
Estratégia de captura das instituições
jurídicas fez escola entre líderes autoritários das mais diversas correntes
ideológicas
A proposta de ampliação do número de
ministros do Supremo
Tribunal Federal, com o objetivo de "enquadrar
o judiciário", nas palavras do líder do governo Bolsonaro na Câmara
dos Deputados, constitui uma gravíssima ameaça à sobrevivência de nossa
democracia constitucional.
A captura dos tribunais constitucionais e
outras esferas de aplicação da lei é uma medida reiteradamente adotada no
processo de consolidação de regimes autocráticos. Quem explica a lógica dessa
estratégia é Adolf Hitler.
Ao prestar juramento em 1930 perante o
tribunal de Leipzig, discorreu de maneira cristalina sobre a estratégia de seu
partido: "A Constituição apenas estabelece o mapa da batalha... Nós
ingressaremos nas instituições jurídicas e desta forma transformaremos nosso
partido numa força decisiva... quando nos assenhorarmos do poder
constitucional, iremos moldar o Estado de acordo com aquilo que entendermos
conveniente".
Embora não se queira estabelecer qualquer paralelo com o nazismo, a estratégia de captura das instituições jurídicas fez escola entre líderes autoritários das mais diversas correntes ideológicas.
Após a derrubada da Primeira República, uma
das primeiras medidas do governo provisório de Vargas foi ampliar de 11 para 15
o número de ministros do Supremo Tribunal Federal, cassando ministros
insubordinados a partir de 1937. Da mesma forma, o regime militar, instaurado
em 1964, decidiu ampliar de 11 para 16 o número de membros do Supremo, por meio
do AI nº 2, de 1965, que também suspendeu as garantias dos magistrados.
Posteriormente promoveu a aposentadoria compulsória de seus mais proeminentes
membros, como Evandro Lins e Silva e Victor Nunes Leal.
Para que não pareça que apenas os
autoritários brasileiros se deixaram inspirar por essa ideia torpe, cabe lembrar
os casos da Venezuela, Turquia e Hungria; três autocracias contemporâneas,
em que a captura dos tribunais constitucionais foi parte central do processo de
erosão democrática.
Após ascender ao poder por via eleitoral,
em 1999, Hugo Chávez convocou uma assembleia constituinte que, em menos de dez
meses, produziu uma nova Constituição. Descontente com a atuação independente
do Supremo Tribunal de Justiça, que ousava contrariar seus interesses, em 2004,
ampliou de 20 para 32 o número de membros do tribunal. O general
Mourão, que serviu como adito militar brasileiro na Venezuela, certamente
conhece o desfecho dessa história.
Na Hungria, após conquistar a maioria
absoluta do parlamento, em 2010, o primeiro-ministro Viktor Orbán, promoveu uma
ampla reforma constitucional, complementada por duas emendas à Constituição que
ampliaram o número de membros do então independente Tribunal Constitucional,
assim como restringiram o acesso dos cidadãos à corte, que deixou então de
importunar o primeiro-ministro.
No mesmo ano, Recep Erdogan, então
primeiro-ministro da Turquia, aprovou uma emenda constitucional ampliando o
número de juízes da proeminente Corte Suprema do país. Em 2015, já presidente
da República, determinou a prisão de nada menos que 2.745 juízes e promotores,
consolidando seu regime autocrático.
Para se proteger de um processo de erosão
democrática, como os acima mencionados, a Corte Constitucional colombiana
declarou, em 2010, a inconstitucionalidade de uma proposta de emenda que
permitiria ao presidente Uribe, embalado pela ampla popularidade, concorrer a
um terceiro mandato.
Para a maioria do tribunal o "poder de
emendar a Constituição não inclui a possibilidade de derrogar, subverter ou
substituir a Constituição na sua integridade". E a possibilidade de um
terceiro mandato permitiria, entre outras coisas, que o presidente nomeasse a
maioria dos membros de tribunais, ameaçando a independência do judiciário,
elemento central do edifício democrático. Com isso, salvou a democracia
colombiana de uma maioria eventual que buscava sequestrá-la.
Como foi taxativamente colocado pelo ex-ministro
Celso de Mello, a proposta de ampliar o número de membros do Supremo
Tribunal Federal, oriunda de um governo que tem feito emprego sistemático de
medidas infralegais voltadas a subverter o Estado de Direito e desacreditar
nossa Corte Suprema, afronta a independência do Poder Judiciário, colocando em
risco a integridade de nossa democracia. E numa democracia o Supremo não tem
dono.
A Constituição
de 1988, seguindo o exemplo da Lei Fundamental de Bon, de 1949, estabeleceu
que determinados pilares do Estado democrático de Direito, como o sistema de
separação de Poderes, o voto direto, secreto e universal, a federação, além dos
direitos e garantias fundamentais, não podem ser objeto de supressão, mesmo que
por meio de emendas constitucionais.
Ao impedir que o poder constituinte
reformador possa deliberar sobre emendas tendentes a abolir as premissas
básicas da nossa democracia constitucional, as cláusulas
pétreas nos protegem de maiorias autoritárias contingentes.
São, paradoxalmente, limitações habilitadoras da democracia, pois proíbem que uma geração, eventualmente seduzida pelo canto mortal do populismo autoritário, furte da próxima geração o direito de conduzir de forma autônoma e democrática o seu próprio destino.
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