O Globo
Se Lula foi solto por erro de julgamento,
Bolsonaro agride rotineiramente as instituições republicanas
Seria excelente tema para um filme de Luis
Buñuel. Um país que viveu o terror e a violência da perda de seus direitos
cívicos, que sofreu censura e tortura em pelo menos duas ditaduras e delas se
livrou, tem hoje como problema aquilo a que toda democracia aspira: eleições
livres em urnas praticamente invioláveis.
Não é surreal — pergunta um lado meu —
viver o rito essencial de uma democracia, o processo eleitoral, como um
problema?
A resposta exige tato e coragem para
explicitar contradições, coisa que poucos, muito menos nós, brasileiros,
gostamos de realizar, já que a postura compreensiva exige sair dos nichos que
levam a acomodar e adiar questões políticas básicas, esquecendo que, um dia, a
fatura chega com inevitável crueza.
A pergunta que ninguém gosta de fazer, mas existe em todo confronto, é a seguinte: quem se confrontará e, mais profundamente, quem tem legitimidade para concorrer. Nélson Rodrigues dizia que o Fla x Flu existia antes da criação do mundo. No seu genial estilo exaltado, chamava a atenção para as oposições binárias que nos seduzem porque, como seres humanos sem programação biológica exclusiva e podendo nos exprimir em múltiplas línguas e hábitos, a dualidade de um Fla x Flu nos leva à polaridade cósmica do bem contra o mal, com a atraente possibilidade de atribuir o mal absoluto ao Flu se você for Fla ou ao Fla se você for Flu.
Não é por acaso que polarizamos e que a
dualidade domina nosso universo simbólico, feito de línguas cujo esqueleto é
uma escolha arbitrária de sons e sentidos. E que, apesar de termos uma multidão
de partidos, no final as escolhas se reduzam a uma dualidade. Trata-se de um
Fla x Flu, só que é um jogo que, nos próximos quatro anos, definirá aspectos
fundamentais da nossa vida social como um todo, e não apenas num domingo
esportivo. Com direito a mais quatro... Ou, quem sabe, e há quem suponha, para
toda a História...
“Qual é a questão?”, pergunta o leitor
armado de seu voto. É que, para mim, como para muitos outros brasileiros, os
candidatos são opostos, mas ao mesmo tempo parceiros. Coadjuvantes históricos,
porque foi o governo petista de Lula que
colocou no palco Jair
Bolsonaro. A pesquisa que não foi feita seria para saber se
Bolsonaro teria chance antes do mensalão, do petrolão e das delações premiadas
da Operação Lava-Jato.
Bem diferente de um Fla x Flu é o dualismo
Bolsonaro x Lula, que tem o potencial de afetar nossas vidas. No caso do futebol,
as contradições são bloqueadas. Na política, porém, vale tudo. Assim é que Lula
tem como vice um tucano e que Bolsonaro usa como argumento recorrente a
antipatia pela impessoalidade da urna eletrônica, numa demonstração óbvia de
aversão pelo processo eleitoral democrático.
Lula tem como contrapeso a condenação em
todas as instâncias e a prisão. Mas, se ele foi solto por erro de julgamento,
Bolsonaro agride rotineiramente as instituições republicanas. Há uma
retroalimentação de defesas e acusações, e o temor dos democratas é que tal
ambiguidade liquide o ideal de liberdade e igualdade e que legitime o axioma
favorito dos radicais, segundo o qual os fins justificam os meios.
Se Bolsonaro e Lula estão dispostos a
abandonar a confusão entre ser presidente e ser ditador, é justamente o que me
angustia nesta eleição. A polarização tem raiz justamente nas contradições
verbalizadas pelos candidatos. Escolher o menos ruim é, na democracia que
promete progresso, desanimador.
Tudo é complicado, mas não podemos esquecer
que o Brasil brasileiro, do Fla x Flu e dos ideais democráticos, é mais forte
que suas contradições e seus péssimos protagonistas políticos.
Um comentário:
Pô, DaMatta, a eleição não é um problema.
A eleição é um sintoma e a doenca é o FASCISMO de parte da população (O GADO), sua afinidade com o genocida, o orçamento secreto ETC., tudo isso é o problema.
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