O Estado de S. Paulo
PT tem a oportunidade de mostrar que
superou a pretensão de superioridade moral e política que o caracterizava.
Na tarde de 12 de outubro de 1992, morreram
Ulysses Guimarães e Severo Gomes num acidente aéreo. Faleceram também suas respectivas
mulheres, Mora e Maria Henriqueta, junto com o piloto do helicóptero que
conduzia o grupo de Angra dos Reis para São Paulo. Desapareceram, assim, duas
figuras destacadas da política brasileira na segunda metade do século 20. Vale
relembrá-los agora, quando o País vive um momento crítico de sua história.
Penso que a trajetória de ambos, com suas divergências e convergências, pode
servir de referência ao eleitor de centro, mais conservador ou progressista,
cujo voto, em 30 de outubro, será decisivo para o futuro da democracia.
Severo apoiou o golpe de 1964. Ulysses se tornaria o principal líder da oposição ao regime autoritário. Suas trajetórias se entrelaçaram a partir do momento em que, ao início de 1977, o primeiro deixou o ministério do presidente Ernesto Geisel para se juntar ao MDB. Severo puxou a fila dos dissidentes que engrossariam as fileiras da oposição à ditadura. Não aderiu por oportunismo. Quando só havia vantagens em se acomodar, abraçou de corpo e alma a causa da democracia. Senador eleito pelo PMDB em 1982, liderou a Comissão Teotônio Vilela em defesa dos direitos humanos no sistema carcerário e manicomial e foi decisivo para assegurar os direitos dos indígenas na Constituição de 1988.
Coragem maior ainda mostrou Ulysses
Guimarães. Quando a repressão ainda corria solta, ele ousou se lançar
anticandidato à Presidência da República em 1974 para disputar no Colégio
Eleitoral com o general Ernesto Geisel. Perdeu fragorosamente, mas percorreu o
País em campanha denunciando o simulacro de democracia então vigente. Criou um
fato político que ajudou o MDB a ampliar em muito a sua representação no
Congresso nas eleições parlamentares daquele ano. Em 1978, novamente liderando
a campanha nacional da oposição, não se deteve diante das tropas da PM da
Bahia, com armas em punho e cães, a mando do governador, que buscavam impedir a
realização de um ato de campanha do MDB. Com ele estavam Freitas Nobre e
Tancredo Neves, o outro grande líder da oposição.
Tido como mais moderado que Ulysses,
Tancredo não era menos corajoso. Ministro da Justiça no segundo governo de
Getúlio Vargas, não o abandonou quando a aliança de militares com a UDN buscou
forçar a renúncia do presidente. O fim trágico evitou o golpe de Estado.
Tancredo foi com Vargas até o fim, acompanhando o corpo do presidente que tirou
a própria vida até o seu sepultamento, em São Borja. Depois do 31 de março de
1964, negou-se a dar seu voto ao general Castelo Branco na eleição indireta
realizada no Congresso para dar verniz de legitimidade à derrubada do regime
democrático.
Ulysses e Tancredo são a prova de que
moderação não significa covardia, como parecem confundir liberais de fancaria
prontos a se esconder numa suposta neutralidade ou aderir, por medo ou
oportunismo, às forças da direita autoritária, quando o momento exige coragem
cívica para defender os valores da democracia e da liberdade.
Vivemos um momento assim. Não cabe omissão
diante da escolha que faremos em 30 de outubro. Vivos fossem, Ulysses, Tancredo
e Severo não votariam em Bolsonaro jamais, por repúdio ao autoritarismo e à
boçalidade. Democratas, os três eram também homens de vasta cultura humanista,
no caso de Severo acrescida de um profundo conhecimento sobre as tradições
regionais e indígenas do Brasil. Ficariam neutros? Fariam jogo duplo? Duvido,
nada na biografia deles aponta nessa direção. Já disse que não lhes faltava
coragem. Nem eram ególatras mesquinhos. Líder inconteste da campanha das
Diretas Já, Ulysses cedeu lugar a Tancredo quando ficou claro que, derrotada a
emenda Dante de Oliveira, só o governador mineiro seria capaz de vencer no
Colégio Eleitoral e virar a página dos 20 anos de regime autoritário.
Lula reconhece que seu maior erro em 1989
foi não ter buscado o apoio de Ulysses para derrotar Fernando Collor. O
ex-presidente dá sinais claros de que aprendeu a lição. Na campanha deste ano,
escolheu Geraldo Alckmin para ser seu companheiro de chapa. Neste segundo
turno, procurou e recebeu o apoio de um amplo leque de lideranças democráticas,
de Fernando Henrique Cardoso a Simone Tebet, filha do senador Ramez Tebet, que
também não se omitiria nesta hora.
Crítico da política de alianças que
permitiu a reconquista da democracia, nos anos 80, e opositor sectário dos
governos de FHC, a quem acusou injustamente de lhe deixar uma herança maldita,
o PT tem agora a oportunidade histórica de mostrar que superou a visão
autocentrada e a pretensão de superioridade moral e política que caracterizava
o partido. Isso será necessário para vencer as eleições em 30 de outubro e,
mais ainda, para governar o País a partir de janeiro de 2023.
Que a sabedoria política, a firme moderação
e a coragem cívica das grandes lideranças da transição democrática nos ajudem a
atravessar a nossa hora mais escura e a retomar a inacabada construção da
democracia brasileira.
*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP
Um comentário:
Ótimo artigo.
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