sábado, 22 de outubro de 2022

Paulo Sternick* - Déficit de bom senso

O Globo

Primeiro turno sofreu influxo de reação primitiva do imaginário de um eleitorado aterrorizado pela ascensão da esquerda

Jorge Luís Borges dizia ser suficiente ler jornais a cada cem anos. Fatos realmente importantes aconteceriam raramente. Mas a vida mudou, e hoje o jornal — a mídia em geral — é indispensável fonte de informação e análise do peculiar e acelerado mundo que nos cerca. Trecho de uma letra de Dua Lipa, na música “Future nostalgia”, aponta para um assombroso espírito de mutação: “Eu sei que você está morrendo tentando me entender; meu nome está na ponta da sua língua; continua correndo na sua boca; você deseja uma fórmula, mas não aguenta meu som”.

O som do futuro pode ser inaudível, mas ensurdece. Estar na ponta da língua, sem conseguir dizer, resume o impasse entre o mal-estar e sua tradução simbólica. Somos atônitos prisioneiros de um indizível, soterrados em meio aos espectros do futuro. Mas nem tudo é obscuro. O recente artigo de Paul Krugman no New York Times — “Por que a libra britânica está tomando uma surra?” — é autêntica aula de economia e também de psicologia financeira. Pergunta Krugman:

— Então, o que explica a súbita queda da libra?

Uma resposta que lhe agradou veio do economista Dario Perkins, do centro financeiro de Londres:

— O problema com o orçamento não é seu impulso inflacionário, mas sua “idiotice”. Uma economia administrada por idiotas tem de pagar pelo “risco extra”.

A formulação é instigante por implicar na equação da confiança a percepção quanto à sabedoria e integridade dos gestores e do chefe do governo para o qual trabalham. Tangenciei o tema em artigos anteriores. Avisei que o problema não era tanto o respeito ao teto de gastos, mas o desrespeito ao teto de asneiras. O déficit não é tanto fiscal, mas de bom senso. O “risco-idiotice”, somado ao risco ético, teve mais influência danosa na crise do que a própria dívida. Não adianta arrumar o cofre se o investidor não confia na capacidade de quem o organiza — e ainda vê as matas pegando fogo.

A resistência brasileira que repudia Bolsonaro aspira a tirar o bode do Planalto. Mas nada vem sem seu contrário: na iminência de mudança, espectros do futuro rondam temores difusos. Proponho que o resultado do primeiro turno sofreu influxo de reação primitiva do imaginário de um eleitorado aterrorizado pela ascensão da esquerda. Com cálculo tosco e nem sempre consciente, fez-se um hedge contra a “inevitável” vitória de Lula, ao carregar votos à direita — como se houvesse a necessidade de contrapeso.

A dúvida é, ao contrário, se o vislumbre dos sinais arejados de retorno da inteligência e do bom senso prevalecerá — mesmo vindos do âmbito petista. Guilherme Mello, perspicaz economista do PT, sabe que as mudanças requerem negociações com o Congresso. E acerta no ponto quando antecipa que a regra fiscal teria de compatibilizar sustentabilidade fiscal, recuperação do investimento público e aumento dos gastos sociais. Com despesas eficientes e sem corrupção, of course.

O “risco-idiotice” tem sido expressivo por aqui e inclui anacrônica oposição entre Estado e iniciativa privada. Tem gente que se diz de partido novo, mas parece estar psicografando o ultrapassado Milton Friedman e sua falácia de que basta o mercado. Ideias erradas somadas à falta de ética nas políticas públicas provocam insegurança alimentar e incremento do temor diante do futuro. Ainda temos reserva de sensatez e competência? Há um exemplo a seguir. Em seu novo livro, “Uma breve história da igualdade”, Thomas Piketty mostra por que a Suécia passou de país muito desigual para um dos mais igualitários do mundo. A capacidade estatal sueca foi reorientada — evoluindo de mero apoio aos ricos para investimentos maciços no sistema educacional público.

*Paulo Sternick é psicanalista

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