O Globo
Primeiro turno sofreu influxo de reação
primitiva do imaginário de um eleitorado aterrorizado pela ascensão da esquerda
Jorge Luís Borges dizia ser suficiente ler
jornais a cada cem anos. Fatos realmente importantes aconteceriam raramente.
Mas a vida mudou, e hoje o jornal — a mídia em geral — é indispensável fonte de
informação e análise do peculiar e acelerado mundo que nos cerca. Trecho de uma
letra de Dua Lipa, na música “Future nostalgia”, aponta para um assombroso
espírito de mutação: “Eu sei que você está morrendo tentando me entender; meu
nome está na ponta da sua língua; continua correndo na sua boca; você deseja uma
fórmula, mas não aguenta meu som”.
O som do futuro pode ser inaudível, mas
ensurdece. Estar na ponta da língua, sem conseguir dizer, resume o impasse
entre o mal-estar e sua tradução simbólica. Somos atônitos prisioneiros de um
indizível, soterrados em meio aos espectros do futuro. Mas nem tudo é obscuro.
O recente artigo de Paul Krugman no New York Times — “Por que a libra britânica
está tomando uma surra?” — é autêntica aula de economia e também de psicologia
financeira. Pergunta Krugman:
— Então, o que explica a súbita queda da
libra?
Uma resposta que lhe agradou veio do
economista Dario Perkins, do centro financeiro de Londres:
— O problema com o orçamento não é seu impulso inflacionário, mas sua “idiotice”. Uma economia administrada por idiotas tem de pagar pelo “risco extra”.
A formulação é instigante por implicar na
equação da confiança a percepção quanto à sabedoria e integridade dos gestores
e do chefe do governo para o qual trabalham. Tangenciei o tema em artigos
anteriores. Avisei que o problema não era tanto o respeito ao teto de gastos, mas
o desrespeito ao teto de asneiras. O déficit não é tanto fiscal, mas de bom
senso. O “risco-idiotice”, somado ao risco ético, teve mais influência danosa
na crise do que a própria dívida. Não adianta arrumar o cofre se o investidor
não confia na capacidade de quem o organiza — e ainda vê as matas pegando fogo.
A resistência brasileira que repudia
Bolsonaro aspira a tirar o bode do Planalto. Mas nada vem sem seu contrário: na
iminência de mudança, espectros do futuro rondam temores difusos. Proponho que
o resultado do primeiro turno sofreu influxo de reação primitiva do imaginário
de um eleitorado aterrorizado pela ascensão da esquerda. Com cálculo tosco e
nem sempre consciente, fez-se um hedge contra a “inevitável” vitória
de Lula,
ao carregar votos à direita — como se houvesse a necessidade de contrapeso.
A dúvida é, ao contrário, se o vislumbre
dos sinais arejados de retorno da inteligência e do bom senso prevalecerá — mesmo
vindos do âmbito petista. Guilherme Mello, perspicaz economista do PT, sabe que
as mudanças requerem negociações com o Congresso. E acerta no ponto quando
antecipa que a regra fiscal teria de compatibilizar sustentabilidade fiscal,
recuperação do investimento público e aumento dos gastos sociais. Com despesas
eficientes e sem corrupção, of course.
O “risco-idiotice” tem sido expressivo por
aqui e inclui anacrônica oposição entre Estado e iniciativa privada. Tem gente
que se diz de partido novo, mas parece estar psicografando o ultrapassado
Milton Friedman e sua falácia de que basta o mercado. Ideias erradas somadas à
falta de ética nas políticas públicas provocam insegurança alimentar e
incremento do temor diante do futuro. Ainda temos reserva de sensatez e
competência? Há um exemplo a seguir. Em seu novo livro, “Uma breve história da
igualdade”, Thomas Piketty mostra por que a Suécia passou de país muito
desigual para um dos mais igualitários do mundo. A capacidade estatal sueca foi
reorientada — evoluindo de mero apoio aos ricos para investimentos maciços no
sistema educacional público.
*Paulo Sternick é psicanalista
Um comentário:
Pois é...
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