O Estado de S. Paulo.
Se der mais atenção à ideologia do que à
aritmética, aderir à gastança e desprezar a boa gestão fiscal, o novo
presidente comprometerá suas políticas sociais
Educação, saúde, cultura, ciência e tecnologia aparecem com frequência nas falas do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, e esse repertório marca uma enorme diferença entre ele e o atual chefe de governo, Jair Bolsonaro. Mas ambos se assemelham, em seus discursos, quando se dirigem principalmente a seus eleitores, ou, de fato, supostos eleitores. Assim como a reação ao petismo ajudou a eleger Bolsonaro, o antibolsonarismo contribuiu para a vitória de Lula em 2022. Petistas, não petistas e até antipetistas garantiram, com 60,34 milhões de votos, um terceiro mandato ao ex-líder sindical. Nem era preciso, para votar dessa forma, esperar um grande governo a partir de 2023. Deve ter sido suficiente, para muitos, a mera perspectiva de um retorno à civilização. Mas Lula se dirige aos companheiros de partido como se tivessem garantido sua vitória e, além disso, como se as bandeiras partidárias indicassem um programa de governo. Se acreditar nisso, retrocederá para antes de 2002 e comprometerá as possibilidades de um bom trabalho.
O presidente eleito vem alternando, há mais
de uma semana, dois discursos, um dirigido ao conjunto dos eleitores, outro
voltado para o petismo tradicional. O próprio Lula parece, em vários momentos,
encarnar esse petismo. Quando promete o fim das privatizações e sugere uma
escolha entre políticas sociais e responsabilidade fiscal, o líder petista
retorna aos velhos palanques, esquece as obrigações e limitações do governante
e se envolve, totalmente, nas nuvens da ideologia. No governo, toda opção
fundamental terá algum sentido ideológico, mas nenhum valor moral, político ou
estético revogará a aritmética e produzirá recursos ilimitados.
A tolice mais evidente a respeito das
contas de governo foi logo apontada. É falsa a oposição entre disciplina fiscal
e políticas sociais. Problemas ocasionados por desajustes nas finanças públicas
afetam mais duramente os pobres que os outros grupos. Quando déficits mal
planejados alimentam a inflação, quem sobrevive com dinheiro curto é o mais
prejudicado. Se o aumento da dívida pública resulta em juros mais altos, as
famílias mais modestas são as mais oprimidas pelo crédito escasso. Tesouro em
bom estado e dívida oficial controlada e previsível favorecem juros moderados,
maior oferta de empréstimos e taxa de câmbio sem grandes oscilações. O dólar
instável e supervalorizado foi, nos últimos quatro anos, um frequente fator de
pressões sobre o conjunto dos preços e sobre o custo de vida.
Contas de governo em ordem, com eventuais
déficits bem planejados e dívida pública bem programada, tornam o horizonte
mais claro, facilitam o planejamento empresarial, evitam o risco de surtos
inflacionários e favorecem juros moderados. Se a política oficial contemplar,
em tempos normais, a geração de superávits primários (saldos positivos, sem
contar os juros da dívida), o poder público terá melhores condições para gastos
excepcionais quando a atividade econômica fraquejar.
Política fiscal é antes de mais nada um
fato político e, em grande medida, cultural. Em democracias avançadas, contas
oficiais em ordem são valorizadas por diferentes partidos e desejadas como
componentes da normalidade. Déficits sustentáveis podem ser aceitos como
aspectos da vida normal. Nesse caso, as contas públicas, mesmo deficitárias,
são financiadas com juros baixos e sem grandes problemas para a rotina dos
cidadãos e de suas organizações.
Nada disso é compatível com a recusa
explícita da responsabilidade fiscal ou com aberrações como um orçamento
secreto. Além disso, em democracias avançadas a Constituição, multissecular ou
adotada depois da 2.ª Guerra Mundial, é um conjunto quase sagrado, e pouco
extenso, de normas fundamentais. Não se recorre, como no Brasil, a emendas
constitucionais para resolver problemas políticos do dia a dia e para eliminar
dificuldades da administração. A legislação ordinária basta para regular a
maior parte da vida, mesmo em sociedades complexas, dinâmicas e em constante
evolução.
Como toda ação política, a administração
das contas oficiais envolve valores e prioridades. A limitação de recursos,
inevitável fora do Paraíso, se impõe tanto às famílias quanto ao poder público.
Pode-se valorizar o combate à pobreza, trabalhar pelo desenvolvimento social ou
dar preferência a outros objetivos. Em qualquer caso, será preciso calcular os
custos, avaliar os meios disponíveis e ordenar as despesas, podando outros
gastos. Tudo se complica, obviamente, quando é preciso comprar apoio
parlamentar para a execução de uma política. Quando isso ocorre, as ações se
tornam mais caras e os meios, mais escassos.
Lula conhece as dificuldades políticas da
administração. Mas essas dificuldades são especialmente importantes quando se
tenta conciliar as boas intenções e a boa gestão financeira – quando se tenta,
por exemplo, realizar políticas sociais sem violar a responsabilidade fiscal.
Nenhuma boa intenção produzirá efeitos duradouros se essa responsabilidade for
renegada.
*Jornalista
Um comentário:
O cara é só jornalista?!,rs.
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