Folha de S. Paulo
Golpismo, ameaças armadas e infiltração nas
instituições devem acabar
O destino da democracia depende também de
um processo de desbolsonarização. O bolsonarismo tem vários aspectos, mas
trata-se aqui da sua frente político-institucional. Isto é, de dar cabo do
projeto de solapar ou suprimir a república (eleições livres, separação e
autonomia de Poderes, direitos civis e políticos).
O bolsonarismo é também uma seita fanática,
messiânica, não raro adepta da violência política. É um ressentimento
sociocultural reacionário (machistas e inimigos em geral da diversidade humana,
aversão ao debate público racional e às instituições da ciência etc.).
É ainda um modo pelo qual certos grupos sociais procuram obter mais poder: líderes do partido religioso e militar, empresários "liberais", o agro ogro. É um meio para grupos criminosos se enraizarem politicamente (garimpeiros, grileiros, desmatadores, milícias, exterminadores de indígenas e de lideranças populares); meio de suprimir movimentos sociais.
É fácil perceber que nem todo eleitor
de Jair
Bolsonaro é bolsonarista.
Os bolsonarismos pareciam instrumentos
úteis para projetos de poder de elites em geral, que normalizaram o monstro
desde 2017. A partir de 2020, em especial em agosto de 2022, a elite mais
civilizada acordou. Foi pouco e tarde.
De interesse mais prático, desbolsonarizar
significa o fim da tolerância com o projeto golpista. Parece banalidade. Mas um
motivo do levante de domingo ou do risco de coisa ainda pior foi a aceitação
desapercebida ou interessada da campanha subversiva.
Não houve processo de impeachment de
Bolsonaro nem punição para seus generais. Quase nenhum golpista foi processado,
afora figuras menores ou caricatas. A desídia da Procuradoria-Geral da
República ficou sem punição —há tempo ainda de submeter Augusto Aras e
colaboradores a impeachment. A contenção judicial da subversão ocorre por meio
de gambiarras no Supremo.
A tolerância com o projeto subversivo
incentivou a adesão à causa e a infiltração institucional. A
polícia do Distrito Federal é apenas um exemplo, agora mais do que
escandaloso.
Não se tomou atitude em relação a
intervenções políticas das Forças Armadas. Oficiais participaram dos ataques de
domingo. Muitos fazem propaganda em rede social do golpismo. É preciso dar um
fim, com punição pesada, a qualquer manifestação militar sobre política.
Empresários financiam faz anos os comícios
autoritários. Até anteontem, expoentes do empresariado de institutos liberais
incentivavam ajuntamentos golpistas de porta de quartel, agora terroristas.
Líderes de entidades de classe de elites profissionais apoiaram o motim.
Em resumo, é preciso estabelecer que a
propaganda da violência política é um crime constitucional, por assim dizer,
com penas pesadas. Jamais foi assim e, portanto, a este ponto chegamos.
Leis, instituições de investigação e
vigilância, organizações militares, o Ministério Público, tudo deve ser revisto
para que se contenha o projeto subversivo, com atenção especial para o
funcionalismo armado ou com posição de relevo institucional. Vale para a
violência política de qualquer cor ideológica, hoje amarela, amanhã sabe-se lá
qual.
A democracia depende de muito mais do que a
desbolsonarização (depende inclusive da estabilidade social, econômica e da
reforma do sistema partidário repulsivo). É insuficiente condenar os
responsáveis imediatos pelo levante de domingo. É preciso lidar com a
negligência mais escandalosamente evidente: ser golpista não custa quase nada.
Manifestos, repúdios ou reuniões simbólicas
de autoridades da República não bastam. Precisamos de reforma institucional
profunda. Quem vai leva-la adiante é o problema.
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