domingo, 12 de fevereiro de 2023

Dorrit Harazim - O pálido ponto azul

O Globo

Como descrever o sentimento de júbilo atávico diante do resgate com vida de um recém-nascido ainda atrelado ao cordão umbilical?

Carl Sagan tinha 5 anos de idade em 1939 quando visitou a Feira Mundial de Nova York. Ficou maravilhado com uma Cápsula do Tempo. Lacrada hermeticamente, a câmara continha jornais, livros e artefatos do cotidiano da época, como um guarda-chuva e um chapéu de dama. Viu-a ser enterrada no solo da área da exposição, no bairro do Queens, para, quem sabe, ser reaberta no inimaginável ano de 6.939 por alguma civilização superior.

— Havia generosidade e humanidade naquela ideia, como mãos estendidas ao longo de séculos ou um abraço em nossa posteridade — escreveria mais tarde o autor de “Cosmos”.

Melhor nem lembrar que, naquele mesmo ano de 1939, um pessoal aqui da Terra produziria uma das grandes insânias destrutivas da espécie chamada Segunda Guerra Mundial.

O garoto Carl, tornado astrofísico de referência mundial e apaixonado divulgador do saber, despertou gerações inteiras para a beleza da ciência planetária. Foi Sagan, como se sabe, quem nos ensinou a ver as primeiras imagens de nossa vizinhança cósmica, produzidas pelas naves espaciais Voyager 1 e 2 meio século atrás — o azul perturbador de Netuno, o esverdeado planeta Urano, a luminosidade de Júpiter. Também foi ideia dele despachar a bordo das Voyagers um Disco de Ouro, a cápsula do tempo que contém amostras de como éramos em 1977. A seleta de sons colhidos no planeta incluiu acordes de Bach, um beijo, a erupção de um vulcão e a linguagem de uma baleia jubarte, entre outros.

O mais lírico, porém, Carl Sagan deixou para o final. Quando a Voyager 1 completou sua missão exploratória e obteve a última imagem programada — a de Netuno —, a Nasa desligou as câmeras da nave para poupar energia e mantê-la mais tempo no espaço. Só que, no entender de Sagan, a missão não seria completa sem uma imagem da Terra dos homens. E, apesar das objeções da equipe científica, para a qual a distância da nave resultaria numa imagem sem valor científico, Sagan bateu pé. Só por isso, no dia 14 de fevereiro de 1990, nosso planetinha foi fotografado a 6 bilhões de quilômetros de distância. A imagem imortalizada recebeu o nome de Pálido Ponto Azul.

— Um grão de areia suspenso num facho de sol — descreveu Sagan em maravilhoso monólogo sobre a foto.

Nesta semana completam-se 32 anos desde que nos vimos retratados naquele pontinho da imensidão sideral. No monólogo acima citado, o cientista nos lembra que “toda pessoa que você ama, conhece, já ouviu falar; todo ser humano que algum dia existiu... todo herói ou covarde, criador ou destruidor da civilização, rei ou camponês; todo casal jovem apaixonado, toda mãe ou pai, criança esperançosa, inventor ou explorador, todo professor de moral, todo político corrupto” viveu, vive e viverá nesse pálido pontinho azul.

Nossa existência presencial naquele grão distante não dura mais que uma piscadela, quando a medida é o tempo cósmico. Por isso convém se reclinar vez por ora e adotar uma perspectiva telescópica da vida. Charles Bukowski tinha razão quando escreveu que pessoas são estranhas:

— Enquanto elas se deixam irritar constantemente por coisas triviais, parecem não perceber quando desperdiçam suas vidas por inteiro.

Quantas vezes morremos tão antes de sermos enterrados!

Esta coluna com jeitão de autoajuda brotou da escassez de palavras para abordar catástrofes atordoantes como o terremoto na Turquia e na Síria. Como descrever o sentimento de júbilo atávico diante do resgate com vida de um recém-nascido ainda atrelado ao cordão umbilical? Como falar daquele pai corpulento, sentado a olhar no vazio, agarrado à mão morta da filha soterrada? Palavras, decididamente, são um meio impuro, já dizia Virginia Woolf. Em compensação, a mente humana é a única ferramenta do universo para refletirmos sobre nós mesmos. Somos mero acidente de matéria e energia? É provável que assim seja. Mas, já que chegamos até aqui, e aqui estamos, melhor termos sempre uma mão estendida para quem dela precisar.

6 comentários:

Anônimo disse...

Será que um dia entenderemos ?

Anônimo disse...

Belíssimo texto!

Anônimo disse...

Sim, belo texto!

Anônimo disse...

Assim os dias passarão - Almir Sater & Renato Teixeira
Dezembro vai, janeiro vem
O tempo passa veloz como um trem
No rádio a notícia, um amigo se foi
Atrás dos mistérios que sempre buscou

Mais uma pra estrada, mais um fim de show
Ao som das guitarras do bom rock 'n' roll
O tempo traz suas lições
E as grava em nossos corações
Contando a história, assim como foi
Mostrando os caminhos que irão nos levar
Como se fosse o rio correndo pro mar
Como se fossem pedras no rio a rolar

Assim os dias passarão
Virão as novas gerações
Outras perguntas, prováveis canções
Outro mundo, outra gente, outras dimensões
E na hora marcada, em algum lugar
Uma estrela virá pra lhe acompanhar.

ADEMAR AMANCIO disse...

Até letra de música nos comentários,bela letra,por sinal.

Anônimo disse...

Texto lindo! Parabéns!