Valor Econômico
Há muitas pontas soltas no debate da
mudança do artigo 142 da Constituição e falta quem as costure
O Artigo 142 da Constituição, que define a
atribuição das Forças Armadas na Constituição, divide seus debatedores em tudo.
Só uma certeza os une, a de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deve se
manter longe da discussão. Se o afastamento do ex-comandante do Exército, Júlio
Cesar Arruda, fez com que Lula assumisse, de fato, o comando das Forças Armadas
e abriu uma janela histórica para que a sociedade discuta os resquícios da
tutela militar, o consenso é de que além disso o presidente não deve ir. A
tarefa é do Congresso.
Foi recebida com cautela, pois, a declaração do ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, de que pretende discutir o tema com os comandantes militares. A iniciativa não apenas coloca o governo no olho do furacão como convoca as Forças Armadas à discussão. Sua participação é rechaçada por parlamentares como o provável relator da matéria, o deputado Carlos Zarattini (PT-SP), e, nos bastidores, por conselheiros petistas como José Dirceu ou mesmo o especialista da matéria no PT, José Genoino. A reação não desmobilizou o ministro, que se mantém determinado a conversar com os comandantes e o presidente sobre o tema.
A ideia de que os militares não deveriam
ser ouvidos porque já o fizeram em demasia na Constituição de 1988 é
demonstrada pelo depoimento do ex-comandante do Exército, general Leônidas
Pires Gonçalves tema de coluna da próxima edição do Eu&Fim de Semana. Nas
contas do professor Antonio Sergio Rocha (Unifesp), a atuação das FA na lei e
na ordem entrou e saiu nove vezes do anteprojeto constitucional.
A pressão militar finalmente prevaleceu
quando a reação conservadora que daria origem ao Centrão pariu o terceiro
regimento da Constituinte e possibilitou a desidratação da comissão de
sistematização.
Se o texto que permanece na Constituição
foi fruto da correlação de forças na Constituinte, a composição política do Congresso
hoje não é mais favorável a uma mudança do que aquela de 35 anos atrás. É esta
configuração que leva interlocutores como o ex-ministro da Defesa, Nelson
Jobim, a advogar contra quaisquer tentativas de alteração no Artigo 142.
O ex-ministro se vale de dois argumentos. O
primeiro é o de que uma tentativa mudança sugere que a Constituição abriga,
sim, uma visão dúbia do que seja o papel das FA. E hoje contam-se nos dedos os
juristas que, a exemplo daquele que tentou emplacar seu filho no Supremo Tribunal
Federal, veem, no artigo 142, as bases para o exercício do “poder moderador” -
no que o ministro Gilmar Mendes chamou de “hermenêutica das baionetas”.
O segundo argumento de Jobim, que
participou da redação que ressalvou a autorização de quaisquer dos Poderes para
a intervenção militar na ordem interna, é que, dada a correlação de forças
desfavorável, há um risco real de derrota. Isso levaria os militares, hoje
acuados pela simbiose com o bolsonarismo, a se arvorarem, novamente, a dar as
cartas como o fizeram no governo passado.
Só um debate mais amplo, capaz de mostrar,
por exemplo, que as FA têm mais a ganhar com o acesso a tecnologia sensível do
que com o poder de polícia, reduziria o tom do embate.
Permanece, porém, a dúvida sobre a
liderança do debate. O PT almeja duas comissões, CCJ e Defesa, embora nenhuma
delas tenha capacidade de alterar a correlação de forças no Congresso ou pautar
o debate.
O mais cotado no PT para a CCJ, o deputado
federal Rui Falcão (SP), costurou acordo entre Zarattini e Alencar Santana
(PT-SP), autor de projeto que manda para a reserva militar que assuma cargo
civil, por uma única PEC.
O tema, porém, divide o partido. O deputado
Arlindo Chinaglia (PT-SP), cotado para a Comissão de Defesa, acata o
aprimoramento do artigo, mas diz que até o general Eduardo Villas-Boas,
ex-comandante do Exército, já atestou a inexistência de “golpe constitucional”.
Também falta unidade no Supremo sobre a
matéria. A concomitância de temas correlatos, como a competência da Justiça
Militar para o julgamento de ações de garantia da lei e da ordem, engrossa o
angu. A ação que tramita no Supremo tem o voto favorável do ex-ministro Marco
Aurélio, de Alexandre de Moraes, Luiz Fux e até de Luís Roberto Barroso, mais
eloquente teórico dos pressupostos democráticos da contemporaneidade.
Divergiram Edson Fachin e Ricardo Lewandowski. Este último pediu vista quando
estava a um voto de perder e levou a ação para o plenário presencial.
Gilmar Mendes foi um dos poucos ministros a
se manifestar abertamente pela discussão do aprimoramento do Artigo 142 e pela
necessidade de se repensar o instituto das GLOs. Mantém convergências com as
posições assumidas pelo ministro da Justiça, Flávio Dino, que vê uma janela
para o tema, desde a invasão de Brasília, ainda que não repute a mudança do
artigo como imprescindível.
Recai sobre a Justiça a cobrança para a
formatação de uma força capaz de substituir as FA nas funções que acabou por
assumir com a banalização das GLOs. A Força Nacional, formada por PMs, é a
candidata natural, uma vez que uma Guarda Nacional acarretaria em nova rubrica
orçamentária.
A proposta de Zarattini mantém a atuação
dos militares na Defesa Civil e em operações em defesa dos territórios
indígenas, por exemplo, mas não dá cobertura para a função de policiamento ou
na logística eleitoral. De 1992 para cá, as 145 GLOs assim se dividiram:
violência urbana (23), greve de PMs (26), votação e apuração (24), eventos (39)
e outros, como calamidades e defesa de indígenas, (33).
O novo comandante do Exército, general
Tomás Paiva, não se pronunciou sobre o tema, embora já tenha procurado
parlamentares para discuti-lo. Há quem advogue que o avanço na investigação sobre
a ação e omissão de militares da ativa e da reserva em 8/1 daria mais
legitimidade à sua investida pela despolitização dos quartéis.
O rechaço amplamente majoritário da
população à invasão de Brasília e a queda da confiança nas FA que, na última
pesquisa AtlasIntel (31/1), ficou nos mesmos patamares do governo federal e do
Supremo, indicam uma abertura na sociedade ao tema.
A correlação de forças na reforma
tributária também é desfavorável, mas neste tema, a presença de Lula é
imperativa. No 142 ele não tem nada a ganhar e muito a perder. Sua interdição
sugere um problema quase intransponível. Há pontas soltas entre uma opinião
pública aparentemente aberta a mudança, um Congresso conservador e FA ainda em
processo de desbolsonarização. Mas não há quem as costure.
3 comentários:
Ou seja, ainda vem muita confusão e discussão por aí...
Maria Cristina Fernandes dá, em poucas linhas, uma rara visão panorâmica do sério problema constitucional.
E mostra que o buraco é muito mas muito mais embaixo.
Fato.
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